Deixar de andar de carro para passar a usar transportes públicos é um dos grandes desafios do país, no seu caminho para a transição energética e para uma sociedade descarbonizada. Mas é um objetivo que só pode ser atingido se existir oferta de transporte regular e de qualidade e se, no planeamento das cidades, os modos suaves de mobilidade forem prioritários nas políticas escolhidas.

Falo de transportes públicos em Lisboa num dia de sol para evidenciar a insensata escolha da Câmara em dar luz verde à substituição das quase duas mil paragens de toda a cidade, depois de um acordo com a empresa JCDecaux, em outubro passado. Como consequência, durante todo o inverno, com frio, chuva ou vento, não houve abrigos, muito menos bancos, para muitos dos utentes dos autocarros na capital. As paragens foram esventradas, a calçada portuguesa levantada, as canalizações substituídas. Com a chegada do mau tempo, esses espaços transformaram-se, rapidamente, em pequenas zonas pantanosas, com uma mistura de terra, detritos e materiais de construção.

Uma senhora de 70 anos dizia-me em janeiro, numa dessas paragens desmontadas, que até entendia que fosse preciso modernizar os equipamentos, mas de quem teria sido a ideia de o fazer no inverno, deixando desabrigados os lisboetas?

Não tenho a mesma certeza que ela sobre a necessidade de modernizar os abrigos das paragens dos autocarros. Qual era o problema dos antigos? Se havia alguns estragados, não poderiam ser apenas esses substituídos? Eram pouco confortáveis para os utentes ou pouco adequados para a publicidade que a JCDecaux aí coloca? Acima de tudo, valerá o design das novas estruturas toda esta perturbação na cidade?

Seria mais fácil entender a gigantesca operação se os novos equipamentos trouxessem algo de inovador, como painéis solares para auto-suficiência na iluminação. Ou coberturas verdes como as que já começaram a ser instaladas na

cidade da Maia, pela empresa a quem estão, precisamente, concessionados os outdoors e mupis do Município. Aliás, abrigos sustentáveis que reduzem a poluição, melhoram a qualidade do ar e a refrigeração são já uma realidade em vários países europeus.

Do que se vê nas paragens já finalizadas, as coberturas verdes não foram uma prioridade, tal como não parece ter havido grandes preocupações ecológicas na escolha dos materiais usados - em tudo semelhantes aos que já lá estavam. Na cidade que nos anos 60 do século passado viu nascer os jardins da Gulbenkian, o Jardim das Oliveiras no Centro Cultural de Belém ou a cobertura verde na ETAR de Alcântara, esta alteração sabe a pouco e é uma oportunidade perdida. Lisboa, onde o passe mensal para os transportes públicos se chama “navegante”, não foi capaz de oferecer no último ano um porto seguro para os utentes dos seus autocarros.

Mesmo considerando a complexidade de toda a operação, e apesar das garantias de que o processo foi feito de acordo com as características de cada bairro, é discutível se foi seguido um plano lógico e racional. A velocidade da retirada dos abrigos foi bem superior à sua reposição, o que trouxe incómodos vários e prolongados. Ainda agora, numa primavera mascarada de verão, há paragens que subsistem sem abrigos, logo, sem sombra.

Curiosamente, ao lado deste abrigos desmontados estão painéis informativos da Carris invariavelmente desligados, ou que, quando ligados, mostram tempos de espera errados, provocando desespero nos trabalhadores e confusão nos visitantes. Penso que teria sido bem mais útil investir no que não funciona.

Andar de autocarro e olhar para a cidade sem a distração de um livro ou do telefone deixa ver carros em todo o lado, o meio de transporte que queremos reduzir. Eles estão estacionados em cima dos passeios, lado a lado com esplanadas, no meio das faixas de rodagem com 4 piscas ligados. Os autocarros fazem autênticas gincanas para ultrapassar os obstáculos. Como dizia a minha interlocutora naquela paragem, o progresso obriga a coisas destas, ao tráfego dos Tuc-Tuc, à condução intrépida

dos transportadores da Glovo ou Uber, à praga das trotinetas. Respondo que tudo isto pode coexistir em harmonia, desde que haja planeamento e bom senso.

Algo que falhou na substituição dos abrigos de paragens. Mesmo as que já estão prontas a estrear, mantêm sacos de brita e calçada por reconstruir à sua volta. Na Rua do Arco do Carvalhão, só para dar um de muitos exemplos, há uma cratera no lugar da paragem e, como o passeio é muito estreito, ao transeunte não resta alternativa senão circular pela estrada.

Em abril de 1944, quando o serviço de autocarros da Carris foi inaugurado, fizeram a primeira viagem até ao aeroporto oito passageiros, metade dos quais eram funcionários da empresa. Oitenta anos depois, a empresa transporta praticamente 127 milhões de passageiros (dados relativos ao ano de 2022, o último disponível no site da empresa). Com ou sem abrigos, os autocarros nunca deixaram de passar. Mas os utentes mereciam que alguém se tivesse lembrado de que só vale a pena mudar quando é para melhor.

QOSHE - "Navegante" sem porto seguro - Davide Amado
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

"Navegante" sem porto seguro

17 0
24.04.2024

Deixar de andar de carro para passar a usar transportes públicos é um dos grandes desafios do país, no seu caminho para a transição energética e para uma sociedade descarbonizada. Mas é um objetivo que só pode ser atingido se existir oferta de transporte regular e de qualidade e se, no planeamento das cidades, os modos suaves de mobilidade forem prioritários nas políticas escolhidas.

Falo de transportes públicos em Lisboa num dia de sol para evidenciar a insensata escolha da Câmara em dar luz verde à substituição das quase duas mil paragens de toda a cidade, depois de um acordo com a empresa JCDecaux, em outubro passado. Como consequência, durante todo o inverno, com frio, chuva ou vento, não houve abrigos, muito menos bancos, para muitos dos utentes dos autocarros na capital. As paragens foram esventradas, a calçada portuguesa levantada, as canalizações substituídas. Com a chegada do mau tempo, esses espaços transformaram-se, rapidamente, em pequenas zonas pantanosas, com uma mistura de terra, detritos e materiais de construção.

Uma senhora de 70 anos dizia-me em janeiro, numa dessas paragens desmontadas, que até entendia que fosse preciso modernizar os equipamentos, mas de quem teria sido a ideia de o fazer no inverno, deixando desabrigados os........

© Jornal de Notícias


Get it on Google Play