O professor João de Matos Antunes Varela reuniu, em Maio de 1972, palavras que proferiu por ocasião da sessão póstuma de homenagem ao doutor Fernando Andrade Pires de Lima. O opúsculo intitula-se “Perfil de um homem de carácter”. Ambos tinham sido ministros da 2.ª República, ou Estado Novo, e ambos foram grandes jurisconsultos e académicos do século passado. O primeiro foi meu professor. E escreve ali o seguinte: “a verdade é que, com toda a falibilidade inerente à condição dos mortais, a memória constitui o mais fiel compêndio da história que a Providência faculta à meditação de quem sente que começa a descer a encosta sinuosa da vida”. Tem razão o meu saudoso mestre e antigo ministro da Justiça. Porque a memória me obriga a falar de um ministro improvável do Governo de Portugal em 2023. E porque Varela alude a homens de carácter, uma característica tão deficitária no contemporâneo nacional. O que pretendo recordar, então, desse ministro dolosamente escolhido para encerrar a oratória do Governo na apresentação, na generalidade, do orçamento de Estado? Ei-lo, pois, na minha memória sentado num restaurante ao lado de um crítico de audiovisual, e professor universitário, que ele incomoda com sussurros e dichotes parvos (não sei se sabe outros) por causa do que aquele escreve, e que o enviou, com pertinência, para algo não susceptível de descrever aqui. Ei-lo, uns anos depois, no Guincho e no corredor parlamentar a usar da mesma “técnica” com um então adjunto de outro Governo, que teve de fazer orelhas moucas (os jornalistas estavam ali sentados a trabalhar) para não comprometer a dignidade do lugar. E ei-lo, sempre que lhe é dada ocasião, em entrevistas e “perfis”, a recordar que o autor é um “filho da puta” (sic). Por que é que, do pior do que não presta do seu Governo, o primeiro-ministro selecionou o péssimo numa evidente provocação ao chefe do Estado que, por sua vez, desvalorizou o acto em vez de o criticar sem rodeios? Estará o chefe de Estado definitiva e politicamente decaído? Enfim. Comecei por falar de homens de carácter e não de caciques sem história. Homens com obra não meramente facultativa ou deletéria. Homens que só chegaram ao poder com biografias e actividades profissionais indisputáveis. Termino com Karl Kraus, confrade polemista “fin de siècle”. “O segredo do agitador consiste em armar-se em estúpido tanto quanto são os seus ouvintes para que eles pensem que são tão inteligentes como ele”. É o que há.

O autor escreve segundo a antiga ortografia

QOSHE - Governados por agitadores - João Gonçalves
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Governados por agitadores

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06.11.2023

O professor João de Matos Antunes Varela reuniu, em Maio de 1972, palavras que proferiu por ocasião da sessão póstuma de homenagem ao doutor Fernando Andrade Pires de Lima. O opúsculo intitula-se “Perfil de um homem de carácter”. Ambos tinham sido ministros da 2.ª República, ou Estado Novo, e ambos foram grandes jurisconsultos e académicos do século passado. O primeiro foi meu professor. E escreve ali o seguinte: “a verdade é que, com toda a falibilidade inerente à condição dos mortais, a memória constitui o mais fiel compêndio da história que a Providência faculta à meditação de quem sente que começa a descer a........

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