Em apenas um mês, o país viu as suas principais instituições políticas degradarem-se a um ponto que ainda nos era relativamente alheio. É certo que houve o PREC, mas aí tratava-se do desconhecido e do imprevisível. A tropa, que fazia as vezes das instituições, manipulava e deixava-se manipular. As vanguardas político-partidárias aliavam-se e “desaliavam-se” às distintas facções militares. Até ter sido possível formar e manter um Governo (o VI provisório) com ar de Governo, de excelente composição entre ministros e secretários de Estado, que nos levou ao sistema democrático e constitucional em vigor há cinquenta anos. Os presidentes eleitos e reeleitos sucessivamente desde o Verão de 1976 não deslustraram o exercício. O “arco” central retirou-lhes alguma liberdade de acção política na primeira revisão constitucional. Mas, com maior ou menor inteligência igualmente política e um módico de bom senso, os chefes de Estado nunca se deixaram cercar pela contingência e pelas circunstâncias. Houve sempre presidente. Nem os partidos - de onde eles vinham ou tinham recebido apoio -, nem os outros órgãos, por mais que se espremessem com a ajuda das redacções “orientadas”, os conseguiram fechar em Belém. Coube ironicamente ao mais libertário e liberto ocupante do palácio presidencial essa desconfortável sensação, precisamente desde o mesmo dia em que o desgraçado Governo da maioria absoluta socialista começou a cair. Um assunto, com cerca de cinco anos em cima, foi deposto aos pés, tantas vezes alegremente descalços de um Marcelo solar e marítimo, da instituição solitária à beira-Tejo. Não era o regresso do azar dos Távoras. É mesmo um azar de Marcelo. Mais ironia. Numa sociedade em que não se chega a mais de cem metros de distância sem uma “palavrinha” ou uma “cunha”, criou-se um “clima” - que a bolha mediática e o “spin” partidário, dois gémeos sinistros e inseparáveis - de suspeição piramidal no Estado (PR, Governo e gestão administrativa do SNS) a inchar todos os dias. O Governo está demitido. O Parlamento vai ser dissolvido. E o presidente está sob ataque, tendo-se, aliás, colocado a jeito por sucessivas intervenções despropositadas (na forma e no conteúdo) que o regime comunicacional não cessa de parasitar como se fossem a seriedade em pessoa. Na I República, onde o peso da opinião pública e dos caciques era brutal, e as coisas descambavam facilmente para o murro e para a violência, praticamente não houve “vulto” homenageado pelas estatuárias municipais que não tivesse levado a sua laica, republicana e democrática sova no meio da rua. Agora sova-se e mói-se de outra maneira. O processo eleitoral em curso, pejado de mediocridades a despertar ao minuto debaixo da calçada portuguesa, é só um cheirinho do que se vai seguir aos futuros idos de Março. É, pois, em um ambiente de meias-verdades e de meias-mentiras que estamos alegremente, uns estarolas sem tom nem som. Nada nem ninguém se safa. É triste.

*O autor escreve segundo a antiga ortografia

QOSHE - Um azar de Marcelo - João Gonçalves
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Um azar de Marcelo

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11.12.2023

Em apenas um mês, o país viu as suas principais instituições políticas degradarem-se a um ponto que ainda nos era relativamente alheio. É certo que houve o PREC, mas aí tratava-se do desconhecido e do imprevisível. A tropa, que fazia as vezes das instituições, manipulava e deixava-se manipular. As vanguardas político-partidárias aliavam-se e “desaliavam-se” às distintas facções militares. Até ter sido possível formar e manter um Governo (o VI provisório) com ar de Governo, de excelente composição entre ministros e secretários de Estado, que nos levou ao sistema democrático e constitucional em vigor há cinquenta anos. Os presidentes eleitos e reeleitos sucessivamente desde o Verão de 1976 não deslustraram o exercício. O “arco” central........

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