Após uma operação policial sem precedentes no tráfego continental-ilhas, onde 107 mandados de busca foram cumpridos pela força do aparato policial de 140 inspectores em viagem-relâmpago, o dado fundamental que sobrevive à hecatombe é mesmo a ideia de que fica transparente, a olho nu, a total incapacidade do sistema de justiça em respeitar direitos fundamentais dos cidadãos. É o prato cheio servido à demagogia numa ementa que tem sido combustível para o crescimento das forças antidemocráticas, alicerçadas no descrédito, na poluição, nas bananas de uma República.

Vinte e dois dias depois, saem da prisão os três arguidos da operação que derrubou o Governo de Miguel Albuquerque, sem qualquer indício da prática de um singelo crime para amostra. A República assobiou para o ar durante três semanas onde três pessoas foram interrogadas e privadas da sua liberdade em nome de algo que não se assemelha sequer à mais vaga ideia de justiça. Nem aqui nem nas ilhas.

O silêncio da Procuradoria-Geral da República parece que grita. Mais um caso em que ninguém se responsabiliza senão o Tribunal da Relação de Lisboa que vem já a seguir, num passa-culpas demasiado frágil para que a hierarquia judicial possa ser alcandorada a santo remédio de resolução. Se é suficientemente embaraçador que tanta gente tenha sido deslocada, por tão pouco, para uma operação que nada encontra senão mártires, se é grotesco que os interrogatórios se tenham prolongado para além do imaginável, se é inconcebível que a desproporção das forças tenha resultados nulos do ponto de vista da ideia indiciatória, o que verdadeiramente torna tudo isto criminoso é esta confirmação da incapacidade do sistema judicial em alcançar um entendimento e juízo que evite que os arguidos aguardem interrogatórios nos calabouços mais do que as 48 horas ou alguns dias mais, a título de excepção.

Nada obsta a que perante a inexistência de indícios, os detidos sejam libertados enquanto o interrogatório continua. Mas, aparentemente, é mais fácil interrogar detidos. Pode passar a ser crime com moldura penal. A justiça só é justiça quando se concretiza no tempo. Materialmente, exige-se que Marcelo Rebelo de Sousa se pronuncie perante o descrédito. O tempo, aqui, não é dos políticos. O tempo da República é o dele.

QOSHE - Mártires para interrogatório - Miguel Guedes
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Mártires para interrogatório

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16.02.2024

Após uma operação policial sem precedentes no tráfego continental-ilhas, onde 107 mandados de busca foram cumpridos pela força do aparato policial de 140 inspectores em viagem-relâmpago, o dado fundamental que sobrevive à hecatombe é mesmo a ideia de que fica transparente, a olho nu, a total incapacidade do sistema de justiça em respeitar direitos fundamentais dos cidadãos. É o prato cheio servido à demagogia numa ementa que tem sido combustível para o crescimento das forças antidemocráticas, alicerçadas no descrédito, na poluição, nas bananas de uma........

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