A clareza dos números é uma síncope em perspectiva para este novo ano. A divulgação do Relatório anual da “Human Rights Watch” diz muito sobre a incapacidade das lideranças globais assumirem medidas capazes para proteger os direitos humanos no ano que agora findou, horizonte de 365 dias onde constam algumas das piores crises humanitárias de sempre, desafios que a História contará num prosa dura e dará como perdidos. Os princípios universais dos direitos humanos são cada vez mais um verbo de encher.

O carácter doméstico das violações dos direitos humanos é uma das faces mais visíveis da passividade de toda a comunidade internacional. Há um conjunto de lideranças que fecha os olhos, selectivamente, agitando a bandeira da não ingerência. Há um abismo de diferença que separa a aceitação da barbárie do respeito pelos costumes mas as grandes potências mundiais continuam a fazer questão de promover escolhas “à la carte”. Clássicos. Enquanto alguns governos silenciam os crimes de guerra do Governo de Israel contra civis em Gaza, outros apontam o dedo ao Hamas esquecendo as atrocidades russas em território ucraniano ou a responsabilidade norte-americana pelo que acontece no Afeganistão, a perspectiva chinesa em Taiwan ou a repressão cultural a uigures ou muçulmanos turcomenos. Ou no Sudão, onde um conflito armado entre dois generais arrasta as populações para o caos em Darfur. Passividade, conluio, indiferença. Palavras que se conjugam com miséria moral da comunidade internacional em 2023, também na Líbia ou na Turquia, na Hungria ou na Polónia, na Arábia Saudita, Índia ou Egipto. Ou pouco por todo o mundo, há povos que não são tidos nem achados à luz da promoção dos interesses selectivos da diplomacia internacional.

Este será um ano particularmente exigente para o respeito pela diferença. A crises nas democracias ocidentais promovem as mais extremas formas de demagogia e de tentativa de responsabilização dos migrantes por fenómenos conspiracionistas da teoria da grande substituição, com adeptos e votos arregimentados pela pobreza, falsidade ou conveniência. Aqueles migrantes que chegam à Europa para fazer o trabalho que nenhum europeu quer fazer, vivendo em condições que nenhum ser humano deveria considerar vida, não são os culpados pela nossa selectividade nada diplomática. Mas serão moeda de troca gratuita em argumentos falsamente securitários sobre a pureza da raça já daqui a dois meses. A diferença entre passar a fronteira ou pisar o risco. Sem pensamento ou documentos, eis a política a chegar aos postos de fronteira para ser tomada de assalto sem passar em revista.

(O autor escreve segundo a antiga ortografia)

QOSHE - Passar ou pisar a fronteira - Miguel Guedes
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Passar ou pisar a fronteira

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12.01.2024

A clareza dos números é uma síncope em perspectiva para este novo ano. A divulgação do Relatório anual da “Human Rights Watch” diz muito sobre a incapacidade das lideranças globais assumirem medidas capazes para proteger os direitos humanos no ano que agora findou, horizonte de 365 dias onde constam algumas das piores crises humanitárias de sempre, desafios que a História contará num prosa dura e dará como perdidos. Os princípios universais dos direitos humanos são cada vez mais um verbo de encher.

O carácter doméstico das violações dos direitos humanos é uma das faces mais visíveis da passividade de toda a comunidade internacional. Há um conjunto........

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