Quando Manuela Ferreira Leite referia que mais valia suspender a democracia por seis meses para se poderem fazer todas as reformas necessárias, estaria longe de pensar que a História se contaria semelhante, 15 anos depois, com a adiada reforma na Justiça a servir como tónus musculado de uma intervenção inusitada e muito pouco sustentada (ao que se sabe) sobre a corrupção e o tráfico de influências do primeiro-ministro.

A facilidade com que uma linha de um parágrafo assassino de um comunicado da Procuradoria-Geral da Repúblicapermite levar à demissão de um primeiro-ministro diz muito sobre o que um pouco de nada pode fazer pela intromissão do poder judicial no destino democrático do país. Dizer, sem mais, que António Costa será alvo de investigação num processo autónomo por invocação do seu nome por terceiros, sem que se dê qualquer indício sobre a gravidade da situação e da implicação pessoal do mesmo, é atirar lama à parede e esperar que o poço sem fundo a receba. Se o Largo parir um Rato no suposto envolvimento de António Costa, o sistema judicial resiste ou forma Governo?

A fulanização de uma maioria absoluta na liderança do Governo e o ambiente de picadeiro entre PR e PM desde o episódio-finca-pé da não demissão de Galamba não permitiam a substituição da liderança de Costa por um cooptado eventual. Se estivéssemos perante uma maioria relativa, Marcelo poderia exigir um conforto de bloco central ou de uma geringonça para acabar a legislatura. Mas para não fazer cair esta maioria absoluta era necessário que Marcelo fosse para além de ele mesmo.

Os 50 anos do 25 de Abril serão assim comemorados num ambiente político de incerta estabilidade pós-eleitoral e com um Orçamento do Estado provavelmente executado pelas mãos de um padrasto. É notável como Marcelo encontrou uma forma salva-vidas de erguer um qualquer meio-termo. A dissolução do Governo era equacionável ou evitável após António Costa ter feito o que tinha que fazer. Marcelo Rebelo de Sousa optou por manter o Orçamento e punir António Costa com o “voodoo” permanente da Oposição, ao mesmo tempo que assiste ao início do debate interno no PS sobre a sucessão. A vingança serviu-se fria.

O princípio da proporcionalidade e da necessidade entrou numa balança de desequilíbrio. Sente-se um ajuste de contas entre o poder político e o poder judicial na linha do horizonte. A legitimidade política está assegurada, o Orçamento não pode esperar, mas a suspensão da democracia está a sobrevoar o Estado de direito. A relação entre os poderes atinge o seu momento mais crítico. A suspeição é a pior inimiga da democracia.

*O autor escreve segundo a antiga ortografia

QOSHE - Suspender a democracia - Miguel Guedes
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Suspender a democracia

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10.11.2023

Quando Manuela Ferreira Leite referia que mais valia suspender a democracia por seis meses para se poderem fazer todas as reformas necessárias, estaria longe de pensar que a História se contaria semelhante, 15 anos depois, com a adiada reforma na Justiça a servir como tónus musculado de uma intervenção inusitada e muito pouco sustentada (ao que se sabe) sobre a corrupção e o tráfico de influências do primeiro-ministro.

A facilidade com que uma linha de um parágrafo assassino de um comunicado da Procuradoria-Geral da Repúblicapermite levar à demissão de um primeiro-ministro diz muito sobre o que um pouco de nada pode fazer pela intromissão do poder judicial no........

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