Há notícias que não precisam de legendagem, comentário, tradução. “No comments”, espaço de sugestão noticioso, onde tudo o que é supérfluo ou interpretativo não aflora. Imagens cruas, as que bastam. Sem comentários. Sem mais, sem fugas ou contextos. Imagens que falam por si, pelos outros, planas, indesmentíveis, perenes e graníticas pelo peso que transportam. Habitualmente manifestações da natureza, há quem as caracterize pela mão do divino, mas muitas são produto de altercações pela mão do homem. Guerras, cataclismos, o absurdo. O que cabe na lógica do indesmentível murro no estômago, servindo a realidade tal como ela é. É assim que assistimos às imagens do brutal ataque do Hamas a 7 de Outubro ou das inqualificáveis respostas de Israel, das quais o ataque ao campo de refugiados em Jabalia, no dia 31, assoma como aquele que materialmente ultrapassa todos os limites.

Considerar que o Hamas usa os civis como escudo e aceitar/ignorar que assim seja, bombardeando campos de refugiados com centenas de crianças, destruindo hospitais ou igrejas, eis a confirmação da equivalência. Não se exige só sangue-frio ao atacante, exige-se que não se confunda com o agressor a não ser que queira assumir a sua pele. A pretensiosa superioridade moral do Ocidente esvai-se assim. Numa resposta bárbara e impensável à luz do direito internacional que diz respeitar, condenável a todos os títulos, lama que respira mais profundo o poço sem fundo da guerra.

Numa semana, há mais consciência no Mundo sobre o conflito israelo-palestiniano do que em décadas de (pre)ocupação. Como tal, o conflito foi renomeado para “guerra Israel-Hamas”, uma espécie de fruto jovem dos novos belicismos, como se a Palestina não estivesse em jogo de arremesso. Depois da percepção da brutalidade abjecta do Hamas, a forma como Israel está a desbaratar a percepção das suas razões é preocupante mesmo para os seus mais férreos aliados. Os EUA de Biden reforçam a pressão para que a ajuda humanitária cresça e para a “necessidade moral e estratégica” de proteger os civis em Gaza. Mas toda a razoabilidade esbarra num sentimento de vingança que Israel não consegue conter.

Quase um mês depois, confirma-se a ideia que o início do conflito entre a Rússia e a Ucrânia fazia adivinhar: já não há resoluções aceleradas em tempo de guerra. A escalada internacional dos conflitos convida à cirurgia e à lentidão do desgaste. Nem a Rússia resolveu em três dias nem Israel terraplana num mês. E que ninguém nos convença que uma solução não existe. O cessar-fogo é o único lugar de civilização que poderá fazer algo pela identidade das partes.

O autor escreve segundo a antiga ortografia

QOSHE - Todas as vítimas - Miguel Guedes
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Todas as vítimas

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03.11.2023

Há notícias que não precisam de legendagem, comentário, tradução. “No comments”, espaço de sugestão noticioso, onde tudo o que é supérfluo ou interpretativo não aflora. Imagens cruas, as que bastam. Sem comentários. Sem mais, sem fugas ou contextos. Imagens que falam por si, pelos outros, planas, indesmentíveis, perenes e graníticas pelo peso que transportam. Habitualmente manifestações da natureza, há quem as caracterize pela mão do divino, mas muitas são produto de altercações pela mão do homem. Guerras, cataclismos, o absurdo. O que cabe na lógica do indesmentível murro no estômago, servindo a realidade tal como ela é. É assim que assistimos às imagens........

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