É um clássico das campanhas eleitorais que resulta da elevada concentração de microfones à frente de dirigentes partidários durante tantos dias seguidos: lançarem-se atoardas ruidosas para mexer com coisas que deviam estar quietas. Assim foi com a declaração inopinada de Paulo Núncio, vice-presidente do CDS, sobre a necessidade de o país voltar a realizar um referendo para reverter a Lei da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG). O também candidato da AD pelo círculo de Lisboa tem todo o direito à opinião, mas inscrever o tema num contexto de luta eleitoral não tem outro propósito que não o de agitar as águas para mostrar que se está vivo.

Portugal convive, pacificamente, há 17 anos com um quadro legal que permite às mulheres que assim o desejarem interromper a gravidez até às 10 semanas de gestação no Serviço Nacional de Saúde. Somos, de resto, um dos países europeus mais conservadores de entre os que consagram este direito no que ao tempo de gestação diz respeito. Há, inclusivamente, vários especialistas que defendem que o prazo devia ser alargado até às 12 semanas, embora o saber acumulado nos permita perceber que, em média, as gravidezes são interrompidas até às sete semanas.

Se realmente o CDS quisesse discutir o aborto, tinha outras razões para fazê-lo, questionando desde logo a falta de respostas do SNS (um terço dos hospitais públicos não está a realizar este procedimento), o que faz empurrar estas mulheres para o privado (a Clínica dos Arcos recebeu no ano passado 4547 grávidas encaminhadas pelo SNS) ou para contextos sanitários duvidosos.

Acautele-se que o acesso à IVG é garantido com dignidade a quem o desejar, como está inscrito na lei, e não se agitem fantasmas que podem funcionar bem em campanha (o que até nem foi o caso, uma vez que Núncio ficou a falar sozinho) mas que representam apenas um indesejado regresso às trevas.

QOSHE - Ó tempo, não voltes para trás - Pedro Ivo Carvalho
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Ó tempo, não voltes para trás

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02.03.2024

É um clássico das campanhas eleitorais que resulta da elevada concentração de microfones à frente de dirigentes partidários durante tantos dias seguidos: lançarem-se atoardas ruidosas para mexer com coisas que deviam estar quietas. Assim foi com a declaração inopinada de Paulo Núncio, vice-presidente do CDS, sobre a necessidade de o país voltar a realizar um referendo para reverter a Lei da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG). O também candidato da AD pelo........

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