Resposta conscientemente ingénua: sim. Se não houvesse romantismo no futebol, não havia tanta paixão anónima fora dos radares mediáticos. Milhares de atletas e dirigentes que se movem pelo desígnio coletivo de abraçar esse jogo maravilhoso sem dele exigir reconhecimento público ou faustosas retribuições. Mas depois essa abençoada inocência esbarra na realidade: o futebol é uma indústria planetária, cada vez mais um espetáculo multimédia, que busca o lucro, para além do mérito e dos resultados desportivos, apartado de qualquer irracionalidade ou emoção. Ainda assim, não tem, no sempre custoso equilíbrio entre estes dois universos, de haver um que prevaleça sobre o outro. São ambos válidos e necessários.

Os detratores da superliga europeia viram nela um perigo redobrado de tornar ainda mais pequena a janela de acesso a esse mundo mágico, potenciando os colossos e ostracizando os sonhadores. O modelo é obviamente questionável - mesmo depois dos aparentes ajustes democráticos entretanto efetuados -, mas não sejamos incautos ao ponto de olharmos para a FIFA e para a UEFA como santos padroeiros desse romantismo padronizado e para os promotores da superliga como os lobos que atacam o rebanho indefeso. Uns e outros são artífices das máquinas sincopadas de fazer dinheiro e de multiplicar proveitos comerciais. O que Real Madrid e Barcelona quiseram fazer foi garantir (ainda) mais liquidez à conta de um novo, e previsivelmente revolucionário, método de massificação: um campeonato premium cujos jogos seriam transmitidos de forma gratuita numa plataforma comum. Passe a comparação simplista, seria o Spotify ou a Netflix do futebol (a propósito: alguém acredita que, caso vingasse o modelo, depois não seria encontrada uma forma de cobrar o serviço aos subscritores?).

Por tudo isto, a guerra a que assistimos não opõe diabos a anjos, porque o perfume que os inebria é o mesmo. Talvez o pecado tenha sido mesmo o original: o de, associada à superliga europeia, ter sido criada a ideia de uma pequena tribo de privilegiados cujo propósito final seria o de chutar para canto todos os que não fossem da “clique”. A julgar pela enorme resistência um pouco por toda a Europa, muito dificilmente esta superliga verá a luz do dia. Mas não tenhamos ilusões: está dado o sinal de partida para abrir o mercado a outros gigantes. Se o futebol é uma indústria, porque carga de água não há de comportar-se como uma indústria?

QOSHE - Ainda há romantismo no futebol? - Pedro Ivo Carvalho
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Ainda há romantismo no futebol?

5 50
23.12.2023

Resposta conscientemente ingénua: sim. Se não houvesse romantismo no futebol, não havia tanta paixão anónima fora dos radares mediáticos. Milhares de atletas e dirigentes que se movem pelo desígnio coletivo de abraçar esse jogo maravilhoso sem dele exigir reconhecimento público ou faustosas retribuições. Mas depois essa abençoada inocência esbarra na realidade: o futebol é uma indústria planetária, cada vez mais um espetáculo multimédia, que busca o lucro, para além do mérito e dos resultados desportivos, apartado de qualquer irracionalidade ou emoção. Ainda assim, não tem, no sempre custoso........

© Jornal de Notícias


Get it on Google Play