Há dias, num programa de debate na RTP, o ex-ministro da Saúde Correia de Campos fez uma confidência inesperada: quando era governante, tinha um assessor só para as cunhas. Leia-se, para os imensos pedidos de ajuda por escrito que eram carreados para os serviços do ministério, vindos de gente, alguma semianalfabeta, que estava desesperada por uma consulta, uma cirurgia, uma resposta. Estas, ainda assim, não eram as que lhe causavam maior desconforto. Porque as cunhas com “C” grande, ironizou, não vinham por escrito. Eram sopradas de forma subtil, para não deixar rasto. Explicava ainda o ex-ministro que optou por ter uma pessoa dedicada a essa tarefa porque pura e simplesmente não podia ignorar, enquanto governante, que pudesse haver muitos portugueses a quem não restava outra opção que não fosse a de dirigir-se ao poder político para resolver uma questão médica. Para que, dessa forma, não pagasse o justo pelo pecador.
O caso das gémeas e a forma como o caso tem arrastado para a arena da suspeição o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, provoca-nos maior espanto porque assomam milhões de euros na equação. Serem meninas brasileiras filhas de cidadãos bem relacionados dos dois lados do Atlântico também faz adensar o sentimento de injustiça perante uma história que envolve, por alegada deferência do filho do mais alto magistrado da nação, mandantes de diferentes esferas de decisão - política, ética e médica.
A cunha é um hábito enraizado transversal a todas as formas de poder. E, quando chega à saúde, tudo parece ser ainda menos escrupuloso, porque o valor da vida atropela todos os outros. Parece óbvio, pelos fatos conhecidos e comprovados, que as duas meninas só conseguiram acesso ao medicamento mais caro do Mundo como utentes do Serviço Nacional de Saúde porque foram queimadas muitas etapas pelo caminho, para sermos bondosos na qualificação. Por isso é que, para além de terem de ser apuradas todas as responsabilidades, algumas até eventualmente criminais, de quem interveio, direta ou indiretamente, neste caso, é imperioso que, sobretudo do ponto de vista da atuação e da independência médicas, não restem dúvidas sobre o que foi feito e porquê. As cunhas não começaram neste caso nem vão acabar com ele. Mas num contexto social e económico em que as respostas em saúde tendem a ser tendencialmente frágeis, temos a obrigação moral de não deixar que haja ainda mais filhos do que enteados.

QOSHE - O fator C - Pedro Ivo Carvalho
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O fator C

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10.12.2023

Há dias, num programa de debate na RTP, o ex-ministro da Saúde Correia de Campos fez uma confidência inesperada: quando era governante, tinha um assessor só para as cunhas. Leia-se, para os imensos pedidos de ajuda por escrito que eram carreados para os serviços do ministério, vindos de gente, alguma semianalfabeta, que estava desesperada por uma consulta, uma cirurgia, uma resposta. Estas, ainda assim, não eram as que lhe causavam maior desconforto. Porque as cunhas com “C” grande, ironizou, não vinham por escrito. Eram sopradas de forma subtil, para não deixar rasto. Explicava ainda o ex-ministro que........

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