É muito fácil desacreditar a Justiça quando avaliamos o seu estado à luz de um caso mediático. Mais ainda quando o resultado da sua ação está associado à queda de dois governos, como sucedeu em menos de quatro meses com os executivos de António Costa e de Miguel Albuquerque. Dito isto, é impossível não ficar alarmado com o que aconteceu. A perceção do país, que tantas vezes não corresponde ao trabalho competente dos investigadores, é a de que os inspetores e os procuradores indagam, detêm e depois certos juízes destroem as bases da investigação, aliviando os suspeitos das amarras judiciais.

O caso da Madeira é particularmente fértil na construção desta narrativa, porque se ancora em visões dissonantes. À gravidade e quantidade das suspeitas sobre três arguidos (e por arrasto sobre Miguel Albuquerque) não correspondeu a leitura do juiz de instrução, que não viu indícios da prática de crimes. Passámos do 80 para o oito com uma facilidade aterradora. O nosso espanto avoluma-se quando lemos (finalmente) os esclarecimentos da procuradora-geral da República, que vão no mesmo sentido dos facultados pelo diretor nacional da PJ. De que havia provas que apontavam “de forma consistente e sustentada” para a prática de crimes. Lucília Gago acrescenta outro dado relevante: antes da pronúncia do magistrado do Tribunal da Relação, cinco juízes tinham proferido “decisões sustentadas na convicção de existirem já então indícios de ilícitos criminais”. E que, em face da demora do juiz em produzir um despacho (forçando os arguidos a um “cativeiro” de 22 dias), magistradas do Ministério Público procuraram sensibilizar, sem efeito, Jorge Bernardes de Melo.

Não há meio-termo em lógicas tão díspares: mesmo que esta fase processual seja passível de recurso, alguém está a ver mal o filme. O ataque feroz de Lucília Gago a um magistrado pode representar muito mais do que uma estratégia desculpabilizante perante as angústias dos portugueses. Como é que a Justiça vai serenar com um Ministério Público em guerra com os juízes? E atacando um juiz na sua liberdade de decisão não estamos a minar o âmago do próprio sistema? Por outro lado, nada deve impedir a Justiça de questionar o trabalho dos magistrados. Por absurdo que nos pareça, quando tratamos de crimes económicos estamos mais expostos à subjetividade das leituras. Não há um lado certo e outro errado. É o sistema a funcionar. E, neste caso, ainda agora começou.

QOSHE - O juiz decide - Pedro Ivo Carvalho
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O juiz decide

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17.02.2024

É muito fácil desacreditar a Justiça quando avaliamos o seu estado à luz de um caso mediático. Mais ainda quando o resultado da sua ação está associado à queda de dois governos, como sucedeu em menos de quatro meses com os executivos de António Costa e de Miguel Albuquerque. Dito isto, é impossível não ficar alarmado com o que aconteceu. A perceção do país, que tantas vezes não corresponde ao trabalho competente dos investigadores, é a de que os inspetores e os procuradores indagam, detêm e depois certos juízes destroem as bases da investigação, aliviando os suspeitos das amarras judiciais.

O........

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