“Naquele tempo foi extraordinário. Foi muito difícil, mas demos o nosso melhor. Colaborámos como nunca e sentimo-nos reconhecidos. Achámos que alguma coisa ia mudar. Mas não. Depois da covid-19 tudo voltou ao mesmo, e até piorou”.

Estas são palavras de um profissional de saúde, ouvido num estudo recente sobre os impactos da covid em Gaia (www.covid.em.gaia.pt ), impulsionado pela Câmara Municipal de Gaia, numa iniciativa única no país. Olhando com atenção, aqui está um sinal sério do que pode ser a principal doença do sistema de saúde. A covid representou uma exceção, em todos os sentidos, ao que vinha acontecendo. Apesar do sacrifício exigido e do risco evidente, os profissionais reencontraram um sentido, melhoraram-se os indicadores de colaboração e, sobretudo, aconteceu um efetivo reconhecimento do seu valor. E agora, aparentemente, regressámos a um vazio de sentido e de propósito, num sistema com muitas relações inquinadas e cheio de bloqueios.

Tal como noutros contextos organizacionais, o sistema de saúde sofre de enormes défices relacionais. Em geral, os seus profissionais sentem-se pouco escutados e nada reconhecidos. A sua exaustão decorre não só do excesso de trabalho, mas sobretudo desta sensação de invisibilidade e de incompreensão. Estas não se resumem, de maneira nenhuma, a questões salariais e de carreira, embora sejam também uma (pequena) parte do problema. O cerne da questão está, porém, noutro lado.

Enquanto não olharmos com atenção para a construção de qualidade relacional que permita, em simultâneo, uma melhoria da qualidade de prestação de cuidados, o aumento do bem-estar e qualidade de vida de todos os protagonistas deste ecossistema, bem como a sua maior eficiência, estaremos cada vez mais longe de uma solução.

O êxodo em massa de profissionais de saúde do SNS, em particular os mais novos e com um maior potencial de serviço futuro, deveria fazer-nos acordar a urgência de agir. Como se pode fazer esse caminho? Há várias pistas, seguramente. Por exemplo, o modelo de coordenação relacional, de J. Gittell, aponta-nos para a necessidade de construir objetivos partilhados, conhecimento partilhado, respeito mútuo e comunicação eficaz, oportuna e centrada na resolução de problemas.

Estas dimensões criarão ciclos de construção de confiança que podem inverter a degradação relacional que se observa hoje. Podemos começar por aí.

Trabalhar, sem demora, a construção de maior capital relacional no SNS, entre todas as partes interessadas, é vital. Sem isso, o colapso do sistema estará cada vez mais perto. Amanhã pode já ser tarde demais para começar.

QOSHE - A pior doença da saúde - Rui Marques
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A pior doença da saúde

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23.02.2024

“Naquele tempo foi extraordinário. Foi muito difícil, mas demos o nosso melhor. Colaborámos como nunca e sentimo-nos reconhecidos. Achámos que alguma coisa ia mudar. Mas não. Depois da covid-19 tudo voltou ao mesmo, e até piorou”.

Estas são palavras de um profissional de saúde, ouvido num estudo recente sobre os impactos da covid em Gaia (www.covid.em.gaia.pt ), impulsionado pela Câmara Municipal de Gaia, numa iniciativa única no país. Olhando com atenção, aqui está um sinal sério do que pode ser a principal doença do sistema de saúde. A covid representou uma exceção, em todos os sentidos, ao que vinha acontecendo. Apesar do sacrifício........

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