Não é fácil viver. Há uma crise na habitação, a inflação já não é o que era, aumentam as horas de trabalho e diminuem o poder de compra, a qualidade de vida e a paciência para aturar tudo isso. Vivemos a correr, movimentamo-nos em ambientes de grande competição, não temos tempo para nada, comemos e dormimos mal.

Estranhamente, não estamos todos deprimidos, em retiros espirituais ou a saltar de pontes — apesar da falta de energia que nos deveria aniquilar, é assim que vivemos, quer o façamos por obrigação, quer por opção. E, reconheçamo-lo, muitos de nós somos felizes desta maneira e até gostamos desta vertigem. O problema é que a natureza nem sempre está de acordo connosco, especialmente em termos reprodutivos: um homem e uma mulher saudáveis, que tentem engravidar de forma natural aos 25 anos, têm uma taxa de sucesso de cerca de 25% em cada ciclo menstrual.

Se formos homens, ainda podemos empurrar um pouco mais com a barriga: até aos 45 anos, a fertilidade masculina mantém-se mais ou menos constante e todos os dias aparece na comunicação social um ou dois Rolling Stones a ter filhos aos 80 anos.

Contudo, a partir dos 35 anos da mulher, as probabilidades de gravidez diminuem bastante, coincidindo com o aumento do risco de alterações cromossómicas nos óvulos (a mais conhecida é a trissomia 21). A partir dos 39 anos torna-se até mais provável que uma gravidez termine em aborto espontâneo do que no nascimento de uma criança, pois a percentagem de óvulos portadores de anomalias é já superior a 60%. Como lidar com isto tudo? A solução passa, sem dúvida, pela prevenção.

Hoje em dia já é possível preservar a fertilidade feminina através da congelação de óvulos, com bastante eficiência: os métodos mais modernos apresentam taxas de sobrevivência superiores a 90%, preservando a probabilidade de gravidez com esses óvulos.

Isto muda tudo: sendo naturalmente desejável que as mulheres tentem ter filhos o mais cedo possível (idealmente até aos 30 anos), a verdade é que muitas vezes, por razões económicas, profissionais ou sociais, isso não é possível — e, como tal, a congelação de óvulos é uma forma de evitar que muitas mulheres percam a oportunidade de serem mães genéticas dos seus filhos.

O primeiro passo do processo passa pela realização de uma avaliação da reserva ovárica, sendo a hormona anti-mülleriana (AMH) o parâmetro mais importante. Imaginemos o caso da Andreia, que tem 33 anos e um valor de AMH de 2,5 ng/ml — as estatísticas dizem-nos que ela irá, em princípio, conseguir produzir 14 ou 15 óvulos. Já a Carla, 42 anos e com apenas 0,6 ng/ml de AMH, não terá, em princípio, capacidade para produzir mais que 2 ou 3.

Uma vez obtidos os óvulos, é preciso perceber para que é que estes servem: a Andreia, que congelou 14 ou 15 óvulos aos 33 anos, terá uma probabilidade de cerca de 85% de ter pelo menos um filho a partir destes, enquanto para a Carla, que apenas conseguiu 2 ou 3 aos 42 anos, a probabilidade de nascimento de uma criança será, no máximo, de 5%.

A questão é que estas duas mulheres poderão ser a mesma pessoa. E a Carla-Andreia, de 42 anos, agradeceria seguramente a todos os deuses o momento em que, 9 anos antes, decidira preservar a sua fertilidade, fazendo com que hoje pudesse ser a sua própria dadora de óvulos, evitando que o recurso a um tratamento com óvulos de outra mulher fosse a única forma de conseguir ter o filho que sempre desejou e que a vida, por múltiplas razões, adiou.

A criopreservação de óvulos é uma fonte de esperança para muitas mulheres e, certa medida, um fator de igualdade de género e de autonomia feminina, mas é também um procedimento médico, que implica a avaliação cuidadosa por parte de um especialista em fertilidade.

Este texto de opinião surge da colaboração entre Vladimiro Silva, diretor executivo da Ferticentro, Procriar e Ava Clinic, e a Associação Portuguesa de Fertilidade.

QOSHE - Preservação da fertilidade feminina - Vladimiro Silva
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Preservação da fertilidade feminina

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09.04.2024

Não é fácil viver. Há uma crise na habitação, a inflação já não é o que era, aumentam as horas de trabalho e diminuem o poder de compra, a qualidade de vida e a paciência para aturar tudo isso. Vivemos a correr, movimentamo-nos em ambientes de grande competição, não temos tempo para nada, comemos e dormimos mal.

Estranhamente, não estamos todos deprimidos, em retiros espirituais ou a saltar de pontes — apesar da falta de energia que nos deveria aniquilar, é assim que vivemos, quer o façamos por obrigação, quer por opção. E, reconheçamo-lo, muitos de nós somos felizes desta maneira e até gostamos desta vertigem. O problema é que a natureza nem sempre está de acordo connosco, especialmente em termos reprodutivos: um homem e uma mulher saudáveis, que tentem engravidar de forma natural aos 25 anos, têm uma taxa de sucesso de cerca de 25% em cada ciclo menstrual.

Se formos homens, ainda podemos empurrar um pouco mais com a barriga: até aos 45 anos, a fertilidade........

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