No liceu da Guarda os alunos viviam momentos de maravilhas. Jovens – que jovens éramos nos anos 50/60! – aprendemos a aconchegar-nos às palavras de professores bem escolhidos. Questionávamos: por que vinham para uma cidade tão fria? É fácil. A Guarda gelada funcionava como “escola de correção” para docentes que, de língua desenvolta, não poupavam os erros aos salazaristas e apaniguados. Todavia, nas aulas de professores castigados com o frio, aprendíamos a amizade, a ouvir e a descodificar sentidos que superavam textos arrevesados de manuais escolares que perduraram, duraram, duraram... Sempre os mesmos.

Ainda hoje sorrio, quando um célebre senhor doutor amigo do Estado Novo, escrevia o “Sumário” no Livro de Ponto. Lá vinham as malditas “Chamadas”, a adensar medos e.… falta de estudo. Pedia o senhor doutor:

- Responda à pergunta! Diga como está no livrinho, porque quem fez o livrinho sabe mais do que eu e a menina... Por isso fez o livrinho...

Os companheiros de turma ajudavam, bichavam como podiam.

- A menina ainda não ouviu os seus colegas?

- Já sim, senhor doutor.

Era impossível mentir; como podia não ter percebido o que os amigos sopravam de todos os lados da sala de aula? E perguntou:

- Então por que não responde?

Arrisquei: Vale a pena?

Este senhor doutor não suportava o que quer que pusesse em causa a autoridade que ostentava; acresce que a sua presunção de comportamento com liberdade, na rua, era uma vergonha; até andavam de braços colados a passear pela Guarda...! A cidade ia-nos guardando de senhores doutores que adoravam sermões quanto mais pobrinhos melhor. Seguiu-se uma pregação curta, e rematou num tom trágico e penalizador:

- Tem mais que fazer, não é? Quando o passeio é mais importante... O que quer que lhe faça? Não posso dar-lhe positiva...

A negativa saiu à rua, exigiu a assinatura do Encarregado de Educação, a tomar conhecimento da má prestação na “chamada” ...

O sermão valeu boca fechada, não fosse o Diabo tecê-las... O senhor doutor rejubilou, enquanto digeria o castigo que me havia preparado...

Não era fácil seguir o professor mau feitio nas disciplinas que lhe pertenciam: a Filosofia e a História...

Na verdade, nem éramos maus alunos e, se o senhor doutor exigia que soubéssemos o livrinho de cor e salteado, havia uns fios de amizade que se prendiam e resistíamos apesar das ameaças... Em casa, líamos. Muito.

Presumivelmente havia quem não fizesse da leitura o momento de futuras memórias. Porém, a outros textos e, em nome da adolescência e das suas fés, apreendíamos e relíamos, comentávamos palavrinha por palavrinha ... O quê? Surpreendam-se: poucos eram os amigos que não abraçassem os Lusíadas de alma e coração. A “Ilha dos Amores” (Canto IX), sem preces gramaticais e divisão de orações, era o retrato do éden; até parecia pecado o que Camões nos ensinava! Os mais doentes de letras memorizavam excertos para bem do mundo. Em tempo de morrer de amor, repetíamos, piscando os olhos amarotados: Melhor é experimentá-lo que jugá-lo, mas julgue-o quem não pode experimentá-lo. Com os ósculos que imaginávamos, não atingíamos Hollywood, mas fazíamos um esforço...

O episódio da “linda Inês posta em sossego” talvez não atingisse tantas almas, mas criava laços íntimos que se estendiam para lá do liceu e dos arrebatamentos da paixão.

Ainda tínhamos as partituras das cantigas de amor, de amigo, de escárnio e maldizer; tínhamos o: Ai, muito me tarda o meu amigo, na Guarda... afinal, leituras que até os mais apáticos podiam solfejar.


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Em tempos que já lá vão...

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10.04.2024

No liceu da Guarda os alunos viviam momentos de maravilhas. Jovens – que jovens éramos nos anos 50/60! – aprendemos a aconchegar-nos às palavras de professores bem escolhidos. Questionávamos: por que vinham para uma cidade tão fria? É fácil. A Guarda gelada funcionava como “escola de correção” para docentes que, de língua desenvolta, não poupavam os erros aos salazaristas e apaniguados. Todavia, nas aulas de professores castigados com o frio, aprendíamos a amizade, a ouvir e a descodificar sentidos que superavam textos arrevesados de manuais escolares que perduraram, duraram, duraram... Sempre os mesmos.

Ainda hoje sorrio, quando um célebre senhor doutor amigo do Estado Novo, escrevia o “Sumário” no Livro de Ponto. Lá vinham as malditas “Chamadas”, a adensar medos e.… falta de estudo. Pedia o senhor doutor:

- Responda à pergunta! Diga como está no livrinho, porque quem fez o........

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