O relógio marca «23:30h» quando a sessão chega ao fim. Ao redor do modesto auditório, principia-se uma cacofonia de vozes indistinguíveis, de passos pesados e apressados, de breves despedidas fugidias. A Biblioteca Municipal — até então embrenhada numa hipnotizante névoa de silêncio, de atenção, enfim, de reflexão — convertida, de um instante fugaz para o outro, em palco de uma azáfama generalizada. Ainda a palavra «Liberdade» ecoava pelo ar, como que material ao repercutir-se pelas paredes, e já o local perdia, num ápice, metade da sua prévia lotação. Contrariando a corrente, porém, não abandono a desconfortável cadeira de madeira — indelevelmente marcada pela sessão, não consigo reunir o arrojo para tal. Enquanto os outros se dispersam, permaneço ali, tão imóvel que pareço ter-me convertido numa autêntica estátua, paralisada pelo mármore da minha própria composição. Demasiado receosa de que, caso deixe a sala ou tão-só me mova, o conteúdo do testemunho de Aurora Rodrigues — presa política na lúgubre era do Estado Novo — se me desvaneça, repentinamente, da memória. Um tanto ou quanto indignada, pergunto-me como é que esta gente é capaz de voltar à sua vida quotidiana com tamanha rapidez; como é que são capazes de pospor, de relegar tão levianamente o que ouviram. Terão os outros, igualmente, chegado ao âmago da questão há pouco colocada? Terão, tal como eu, percebido que os tempos de censura e opressão da ditadura de Salazar parecem querer, a todo o custo, voltar?

Abruptamente assaltada por questões, sou simplesmente incapaz de me levantar. Inapta e impotente perante a evidência da magnitude dos obstáculos que a Liberdade enfrentou e enfrenta, de modo similar, ainda nos dias que correm.

Uma sensação de desespero insinua-se-me no peito.

Que será da Liberdade?

Que será do direito que permite a cada indivíduo tomar as rédeas da sua própria vida?

Que será da chama que alumia o caminho do progresso?

De súbito, ela parece-me frágil demais, efémera face à crueldade do mundo. A sua existência continuamente ameaçada: pelo autoritarismo, com a sua característica sede por controlo e repressão; pela progressiva manipulação de informação, com vista a controlar e influenciar as massas; pelas desigualdades socioeconómicas e injustiças estruturais. Pela própria tecnologia, altamente capaz de a impulsionar, sim, abrindo novos horizontes de comunicação e conexão global, contudo igualmente utilizada para a limitar — seja através da vigilância digital, seja por meio da manipulação algorítmica das redes sociais —, ameaçando corroer, pouco a pouco, sorrateiramente, os alicerces da democracia e da privacidade individual.

Perante tantos desafios, o futuro apresentasse-me assaz incerto: uma realidade sem Liberdade — onde os mares da existência estariam estagnados, aprisionados sob o jugo de tiranos opressores — cada vez mais plausível, tendo em conta as tendências da sociedade e os eventos, tanto mundiais quanto nacionais, recentes. Pareço conseguir vê-la nitidamente, como se inevitável, a desenrolar-se à minha frente: tão vasta e imprevisível quanto os próprios oceanos. E em particular para os que se encontram no lado errado da equação, mais vulneráveis ao abismo da marginalização e da pobreza.

Pisco vagarosamente, uma, duas, três vezes, na tentativa de me libertar da espiral de pessimismo em que mergulhara por acidente. Trazida de volta à realidade física, ao momento presente, olho ao redor. Embora alguns tenham permanecido, conversando com Aurora, a sala ficara praticamente desprovida de elementos, vazia. Observo-os de longe, demasiado comovidos pelo tema «Liberdade» para se convencerem a partir, a seguir em frente. Bebo as palavras, os trejeitos, os sorrisos — algures uma faísca que brilha, perseverante.

Sinto-me menos inquieta com essa visão. Inspiro profundamente e obrigo-me a recordar o testemunho daquela senhora tenaz; a recordar que, tal como a história nos ensina, mesmo nas épocas mais sombrias, a chama da Liberdade nunca se extingue por completo. Ressurge, vez após a outra, alimentada pelo inextinguível ímpeto da humanidade em procurar a sua emancipação.

«Se queremos um futuro, no sentido pleno do conceito, não podemos tomá-la como garantida» ouço um amigo — também ele jovem, como eu — dizer. Refere-se à Liberdade, e Aurora sorri-lhe em resposta.

Quando dou por mim, também o faço. Também eu sou contagiada.

Talvez a minha esperança permaneça viva, apesar de toda a incerteza. Talvez a manutenção da Liberdade — e que palavra tão diminuta para um significado tão colossal; capaz de suportar tamanha fé, tamanho anseio — caiba a cada um de nós. E, se esse é o caso, então acreditarei num futuro em que, quais guardiões da sua preciosa dança, continuaremos a nutrir a universalidade desse valor. Assim como Aurora Rodrigues, e muitos outros, o fizeram antes: resistindo à tirania, denunciando as injustiças, lutando incansavelmente por um mundo onde todos tenham o direito à dignidade e à autonomia.

Dever que recai, quiçá em especial, nos jovens — cidadãos de hoje, de agora, e não apenas de um futuro mais ou menos longínquo. Nós: jovens que, do mesmo modo, continuarão a travar a luta pela preservação da Liberdade, retificando-a. A arte como a nossa maior e mais poderosa arma; grito de revolta e insubmissão. Seja através da pintura, da música, da escrita, ou do teatro. Porque também assim se luta. Também isto é importante. Tudo, para impedir que a nossa história sombria se repita; para assegurar que a Liberdade continue a dançar, livre e sublime, pelas gerações futuras.

Levanto-me, por fim, com uma determinação renovada.

Continuarei a entregar-me à arte, mesmo que tal ato pareça minúsculo e em vão. Porque, afinal, não estou sozinha. Prometo-o a mim mesma: lutarei e lutaremos. Juntas, as nossas vozes têm o potencial para mudar o curso do futuro — já o fizeram antes e, acredito, continuarão a fazê-lo.

Saio da biblioteca e a noite, negra e álgida, abre-se diante de mim — um desafio, uma promessa, um caminho que me determino a percorrer. O relógio pode marcar as «23:30h» e a jornada à frente pode, amiúde, ser árdua... Mas sinto-me, e sou, livre. Plenamente livre.

E é o que desejo para todos. Hoje e sempre.


QOSHE - Agora nós, os jovens - Luna Gamanho
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Agora nós, os jovens

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09.04.2024

O relógio marca «23:30h» quando a sessão chega ao fim. Ao redor do modesto auditório, principia-se uma cacofonia de vozes indistinguíveis, de passos pesados e apressados, de breves despedidas fugidias. A Biblioteca Municipal — até então embrenhada numa hipnotizante névoa de silêncio, de atenção, enfim, de reflexão — convertida, de um instante fugaz para o outro, em palco de uma azáfama generalizada. Ainda a palavra «Liberdade» ecoava pelo ar, como que material ao repercutir-se pelas paredes, e já o local perdia, num ápice, metade da sua prévia lotação. Contrariando a corrente, porém, não abandono a desconfortável cadeira de madeira — indelevelmente marcada pela sessão, não consigo reunir o arrojo para tal. Enquanto os outros se dispersam, permaneço ali, tão imóvel que pareço ter-me convertido numa autêntica estátua, paralisada pelo mármore da minha própria composição. Demasiado receosa de que, caso deixe a sala ou tão-só me mova, o conteúdo do testemunho de Aurora Rodrigues — presa política na lúgubre era do Estado Novo — se me desvaneça, repentinamente, da memória. Um tanto ou quanto indignada, pergunto-me como é que esta gente é capaz de voltar à sua vida quotidiana com tamanha rapidez; como é que são capazes de pospor, de relegar tão levianamente o que ouviram. Terão os outros, igualmente, chegado ao âmago da questão há pouco colocada? Terão, tal como eu, percebido que os tempos de censura e opressão da ditadura de Salazar parecem querer, a todo o custo, voltar?

Abruptamente assaltada por questões, sou simplesmente incapaz de me levantar.........

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