À beira da hora para entregar o texto e já com o nervoso miudinho, vejo na televisão uma caterva de jornalistas de micro na mão atrás de um populista e arrisco escrever de rajada sobre a mediocracia política e ver no que dá, sabendo de antemão, e porque me conheço de ginjeira, que não passa de uma tentativa de me iludir a mim mesmo, não conseguindo fugir ao excesso de caracteres, ao corte e costura e à obsessiva compulsão da revisão quase até ao momento em que me decido a carregar na tecla para enviar. Fez tudo isto com que acabasse por escrever uma primeira frase demasiado longa e refém da respiração permitida pelas vírgulas, admitindo que estão elas no seu sítio. Esbanjado o introito, mais custoso se afigura tratar de forma consistente o tema proposto — olha, escreve sobre a dificuldade em secar roupa no Inverno e como essa é uma preocupação exclusiva das mulheres —, até porque continuo a divagar ou a enrolar, o que pode ou não ir dar ao mesmo, aflorando em mim a convicção de que apenas conseguirei fazê-lo de forma superficial se persistir nesta escrita vazia e em catadupa, bem mais propícia à leitura na diagonal e aumentando a possibilidade de o leitor se desinteressar.

Tivesse eu lido A Mediocracia, de Alain Deneault, e talvez a tarefa se afigurasse mais simples. Fica a intenção, para quando conseguir vaga nesse lugar de espera que é a mesa de cabeceira. Entrementes, socorro-me de algumas das entrevistas ao filósofo canadiano e tiro aquela que penso ser a sua ideia principal: a de que a mediania foi assumida como a característica distintiva do nosso sistema social, exigindo do cidadão tão-somente a competência para garantir o funcionamento da máquina e fomentando o espírito acrítico que evite a probabilidade de perturbação. É forçoso, pois, que o indivíduo se conforme, como se de uma selecção inversa se tratasse. O novo homem sem qualidades, até porque, como diz o dito popular, prego que se destaca, leva martelada. Daí que Deneault nos alerte para o alastrar de uma “revolução anestesiante” que traduz a submissão da sociedade a um padrão hegemónico que faz com que os agentes se comportem de maneira intercambiável e previsível. A mediania torna-se a norma, perpetuando uma sociedade de gestão amorfa e insossa.

Lembro-me de um conto de William Tenn — Null-P —, em que, num mundo destruído por conflitos nucleares, um indivíduo — George Abnego — cujos parâmetros correspondem precisamente à média da população, é acolhido como um profeta, o homem médio perfeito. Acaba por ser eleito presidente e dar origem a uma dinastia que assume a liderança do mundo. O que é suficiente torna-se a regra e o “Homo Abnegus” substitui o “Homo Sapiens”. A humanidade regride até que, inevitavelmente, os homens acabam por ser domesticados por uma espécie evoluída de cães que os empregam no seu desporto preferido, a recuperação de paus atirados para longe. Esta é uma narrativa tão mais pertinente quanto Deneault entende ter já sido lançado o assalto dos medíocres ao poder, esfarelando a própria política e afastando-nos dessa ideia peregrina e absurda dos gregos de que a democracia deveria ser o governo dos melhores. Abalroada pela mediania, a democracia transfigura-se numa mediocracia de líderes de aviário, crentes na sucessão dinástico-clientelar e sem fazer caso do “Princípio de Peter”.

Salvo as honrosas excepções, vivemos uma era em que o homem político não arrisca um pensamento mais elaborado, confiando que “para quem é, bacalhau basta” e cingindo-se à frase de efeito imediato e não poucas vezes em contradição com o que se irá dizer dentro de dias. Tendo em conta que talvez sejam estes os políticos com mais formação de sempre, acaba por ser paradoxal que sejam também os mais míopes a ler a sociedade e o futuro, pouco ousando além do esclerosado abrigo partidário que se sobrepõe a tudo e abrindo alas para o abismo populista.

Quantos de entre os nossos líderes actuais “são capazes de atiçar as brasas das fogueiras com as suas palavras?”, questiona Irene Vallejo.


QOSHE - Insosso - Miguel Cardoso
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31.01.2024

À beira da hora para entregar o texto e já com o nervoso miudinho, vejo na televisão uma caterva de jornalistas de micro na mão atrás de um populista e arrisco escrever de rajada sobre a mediocracia política e ver no que dá, sabendo de antemão, e porque me conheço de ginjeira, que não passa de uma tentativa de me iludir a mim mesmo, não conseguindo fugir ao excesso de caracteres, ao corte e costura e à obsessiva compulsão da revisão quase até ao momento em que me decido a carregar na tecla para enviar. Fez tudo isto com que acabasse por escrever uma primeira frase demasiado longa e refém da respiração permitida pelas vírgulas, admitindo que estão elas no seu sítio. Esbanjado o introito, mais custoso se afigura tratar de forma consistente o tema proposto — olha, escreve sobre a dificuldade em secar roupa no Inverno e como essa é uma preocupação exclusiva das mulheres —, até porque continuo a divagar ou a enrolar, o que pode ou não ir dar ao mesmo, aflorando em mim a convicção de que apenas conseguirei........

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