Era e não era, sai o Esteves do café. Vai ligeiro e de mãos nos bolsos. Vai cedo, o Esteves, embalado na isenção de horário que não ata nem desata, no sorriso da empregada do restaurante e no email para o vereador a pedinchar os palcos para a festa do santo-não-sei-das-quantas-que-só-lhe-dá-trabalho. Não volta a cair na esparrela de ir a jogo para presidente de Junta. Preza demasiado o dolce far niente e não foi talhado para isto da responsabilidade e dos fins-de-semana em roda-viva, queixa daqui e salamaleque d’acolá, “sai de casa de madrugada, regressa a casa é já noite fechada”. Vai assim, o Esteves, entretido, quando lhe assalta o pensamento a frase do Bastos dita há pouco no café. Não lhe deu na altura a devida importância, mas espicaça-o agora, a caminho de casa, pronto a ocupar o seu lugar na mesa posta para jantar.

Mas rebobinemos um pouco a vida do Esteves para que possais entender do que aqui se fala. Não muito, só coisa de uma hora. Tinha o Esteves picado o ponto à hora certa e logo entra no café do costume para beber o tinto do costume e petiscar qualquer coisa. Apesar do bom aspecto da tosta mista que sai a crepitar da imaculada tostadeira do Lopes, fica-se por um pastel de bacalhau a tender para o gorduroso. Tudo corre ao ritmo e ao sabor do hábito, as caras de sempre nos lugares de sempre, a piada brejeira e gasta e o futebol na televisão. Tudo no seu devido lugar.

“Quem te viu e quem te vê”, atira-lhe sem aviso o lambe-botas do Bastos do outro lado do café e a propósito da saudação que tinha dado ao entrar, “também já alinhas nisso do politicamente correcto?”, teima o sabujo, com riso trocista e vontade clara de se candidatar a um sopapo. O caso só terá ficado por ali porque um penalti que era e não era, dependendo do ângulo e ainda mais da crença de cada um, fez com que todos se voltassem para o ecrã e logo embarcassem numa sinfonia de monólogos cacofónicos. O tinto caiu-lhe bem e amaciou-lhe o espírito.

Mas é agora, ali, a apanhar nas trombas com o vento frio vindo da serra e enquanto ajeita o escroto para a posição correcta, que lhe bate a frase do Bastos. O Esteves não é parvo, tem a perspicácia que deus lhe deu e percebe a insinuação do tratante. Bem vê onde queria chegar o sacripanta. Se a ele lhe saiu a tontice do “boa tarde a todos e a todas” foi porque estas coisas, de tanto se ouvirem aqui e ali, por todo o lado, acabam por se entranhar e fazer escorregar qualquer um. Foi um lapsus linguae, pronto. Que não haja cá confusões, o Esteves não tem espírito esquerdalho. Logo ele! Se há gajo que não é comuna e se está lixando para o politicamente correcto, é ele. Se antes ainda se inibia e ia a medo, de ora em diante vai a pés juntos, que tem quem lhe aqueça as costas. Encontrou finalmente o “espaço seguro” que lhe permite expressar o que lhe vai na alma. Agora, o Esteves tem um partido que dá voz ao que sempre pensou, mas dizia em surdina. Um líder messiânico que diz — ou grita — as VERDADES. Faltava-lhe isto. Um lugar onde se sentisse aconchegado e não fosse discriminado só por ser como é. Chega de estar aprisionado numa identidade que não é a sua. Numa disforia identitária. O partido veio libertá-lo e permitir que concluísse o seu processo de transição. Foi o seu Grito de Ipiranga ideológico. Um sair do armário numa espécie de movimento #MeToo reverso para racistas e xenófobos. Uma irmandade. São vistos e ouvidos e sentem-se poderosos. Vão limpar tudo!

Nunca o Esteves se encontrou num cenário em que pudesse expressar publicamente a sua opinião sem que alguém o olhasse de soslaio, seja ela sobre os rastros químicos no céu, o grave problema da zoofilia na sociedade portuguesa, a ideologia de género e o lobby gay, a castração química e a ciganada, a grande substituição e a artimanha das vacinas, ou a chusma dos políticos do sistema e o Pai Salazar que governou e nada roubou. Até já pode esticar o braço no ângulo que bem lhe apetecer e em honra dos virtuosos e bucólicos tempos do “ou tás quietinho ou lebas no fucinho”.

Qual fralda para incontinentes onde pode defecar à vontade sem ninguém lhe apontar o dedo ou dizer que é um idiota útil, o partido e o messias são o abrigo que faltava ao Esteves. “O drama é que se promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”, diria Umberto Eco, mas isso agora não interessa nada. Vai assim ligeiro o nosso herói no caminho para casa, ufano e perdido nestas cogitações, confiante e livre, até para enfiar duas lostras na mulher se a sopa não estiver à temperatura ideal ou só porque sim.


QOSHE - Que tempos aqueles, em que só havia um idiota em cada aldeia! - Miguel Cardoso
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Que tempos aqueles, em que só havia um idiota em cada aldeia!

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06.03.2024

Era e não era, sai o Esteves do café. Vai ligeiro e de mãos nos bolsos. Vai cedo, o Esteves, embalado na isenção de horário que não ata nem desata, no sorriso da empregada do restaurante e no email para o vereador a pedinchar os palcos para a festa do santo-não-sei-das-quantas-que-só-lhe-dá-trabalho. Não volta a cair na esparrela de ir a jogo para presidente de Junta. Preza demasiado o dolce far niente e não foi talhado para isto da responsabilidade e dos fins-de-semana em roda-viva, queixa daqui e salamaleque d’acolá, “sai de casa de madrugada, regressa a casa é já noite fechada”. Vai assim, o Esteves, entretido, quando lhe assalta o pensamento a frase do Bastos dita há pouco no café. Não lhe deu na altura a devida importância, mas espicaça-o agora, a caminho de casa, pronto a ocupar o seu lugar na mesa posta para jantar.

Mas rebobinemos um pouco a vida do Esteves para que possais entender do que aqui se fala. Não muito, só coisa de uma hora. Tinha o Esteves picado o ponto à hora certa e logo entra no café do costume para beber o tinto do costume e petiscar qualquer coisa. Apesar do bom aspecto da tosta mista que sai a........

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