Esta notícia provavelmente ir-se-á perder na espuma dos dias, por entre tantos factos, factoides e inanidades que nos vão prendendo momentaneamente a atenção e que esquecemos ainda antes do ocaso do dia. Diz-se que quando nos habituamos a algo, depressa passamos da fase do “estranhar” para a do “entranhar” e por lá ficamos na cómoda letargia de quem acha que as coisas já não podem piorar mais. Mas podem. E isso passa-se em quase todos os quadrantes da nossa vida. Pois bem, a vila de Penamacor vai ficar sem a única ligação semanal que tinha, por autocarro, a Lisboa. O assunto foi abordado na última reunião de Câmara e o presidente da autarquia não poderia dizer muito mais do que disse: Trata-se de uma empresa privada que busca, evidentemente, o lucro e não se pode obrigar a operar onde ela não quer. E, dizemos nós, se por aqui não há lucro, vai-se para outros lugares onde haja mais passageiros que ajudem a encher os autocarros rumo à capital ou a outros destinos mais confortáveis para as contas da empresa. É evidente que os privados não são obrigados a suportar negócios onde eles não se podem manter. Ora, seja nos transportes, seja no que for, aqui, onde a demografia é um conceito praticamente vazio de gente, os negócios que precisam de clientes locais tendem a esfumar-se no horizonte, deixando para trás muitas portas fechadas. Este episódio em Penamacor só espantará quem olha este território de fora para dentro. Quem olha para este Interior e lhe canta loas como uma espécie de paraíso perdido a pairar num vazio a que se chama de silêncio terá de rever a abordagem sob o risco de se perpetuar no ridículo. É que esse silêncio é o legado de décadas de incúria e abandono, do “deixa andar”, que, um dia, alguém resolverá. Este episódio do autocarro é mais relevante pelo simbolismo do que pelo real impacto que terá neste concelho. Simbólico porque quem por cá continua a viver, vê este filme ser passado em modo contínuo em praticamente todos os concelhos da região. E esta é apenas mais uma reposição da saga da extinção de serviços na Beira Interior. Um autocarro aqui, uma escola além, um posto de correios acolá e, gradualmente o território foi ficando entregue à sua sorte - ao tal “silêncio” que tantos apreciam. Primeiro, saíram os privados, por razões económicas evidentes, depois o público seguiu-lhe o exemplo, quando este tem a estrita obrigação de não olhar para os territórios como se fossem uma lista de clientes e assegurar os serviços mínimos que garantam o presente e o futuro. A derradeira mensagem de desesperança é quando o Estado e as suas competências fundamentais se ausentam de partes do território. E aqui estamos nós, outra vez, a relembrar todo um processo feito de constantes contas de subtração, à boleia da extinção de uma ligação para Lisboa. Mas dentro desta contabilidade que nos é amplamente desfavorável não podemos olhar para esta travessia no tempo como sendo sempre igual. Houve, nos governos, quem se comprometesse genuinamente com este processo de coesão territorial. Houve quem pensasse e executasse, com méritos e deméritos. No meio da convulsão política em que vive o país, a memória dir-nos-á quem tentou fazer alguma justiça para com a Beira Interior e alerta-nos para outra coisa: Para a atenção que devemos ter em relação a compromissos que se assumem para com o Interior na acesa campanha eleitoral que se avizinha.

QOSHE - Deixem estar... Já estamos habituados - Nuno Francisco
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Deixem estar... Já estamos habituados

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29.11.2023

Esta notícia provavelmente ir-se-á perder na espuma dos dias, por entre tantos factos, factoides e inanidades que nos vão prendendo momentaneamente a atenção e que esquecemos ainda antes do ocaso do dia. Diz-se que quando nos habituamos a algo, depressa passamos da fase do “estranhar” para a do “entranhar” e por lá ficamos na cómoda letargia de quem acha que as coisas já não podem piorar mais. Mas podem. E isso passa-se em quase todos os quadrantes da nossa vida. Pois bem, a vila de Penamacor vai ficar sem a única ligação semanal que tinha, por autocarro, a Lisboa. O assunto foi abordado na última reunião de Câmara e o presidente da autarquia não poderia dizer muito mais do que disse: Trata-se de uma empresa privada que busca, evidentemente, o lucro e não se pode obrigar a operar onde ela não quer. E, dizemos nós, se por aqui não há........

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