Quando se fala em mobilidade na Beira Interior, há sempre umas utopias que, de quando em vez, se celebram, viajem elas nos carris ou no asfalto. O certo é que de utopia em utopia, chegámos à realidade da absoluta desestruturação dos serviços de transportes públicos, a funcionar nos mínimos em grande parte do território. Há muito que o binómio rentabilidade / demografia é o nosso pior inimigo e isso é bem visível também no domínio da mobilidade. Na esmagadora maioria do território da Beira Interior, a manutenção de transportes públicos a circular revela-se uma operação deficitária para as empresas que, como sabemos, têm de ser compensadas com dinheiro público para que o serviço se mantenha. Isto, porque é evidente que não se pode obrigar os operadores privados a somarem prejuízos em nome de um serviço público que não lhes cabe a eles fazer. O problema é quando o Estado se comporta como operador privado, quando tem outras responsabilidades para com territórios que deixou chegar à indigência demográfica sem se importar muito com isso. Vivemos, assim, reféns de todas as fragilidades que a eufemística “baixa densidade” nos lega, com compensações financeiras dadas a privados para que a dita mobilidade pública chegue até a zonas amplamente despovoadas e envelhecidas, onde é fulcral que os residentes tenham acesso ao transporte para poderem aceder a serviços fundamentais que, muitas vezes, já nem sequer existem nas sedes dos seus concelhos. O que é certo é que só no início do século XXI é que a região teve algo a que se poderia chamar de autoestrada. A peregrinação da Beira Interior fez-se durante muitos anos e só se acreditou que a coisa estaria definitivamente encaminhada quando o asfalto começou a verter sobre anos de silêncios, adiamentos e remendos. O que veio a seguir é sobejamente conhecido, com a epopeia das portagens a cobrir todas as antigas vias sem custos para o utilizador, como foi o caso da A23 - a Autoestrada da Beira Interior. Racionalmente, a explicação para isto ainda hoje é difícil de encontrar: Como é que foi possível que esta via fosse portajada quando na sua génese esteve a tentativa de atenuar uma profunda injustiça territorial, dotando, por fim, esta região com uma autoestrada? Ainda por cima, como bónus, tivemos direito ao custo por quilómetro mais caro do país. Este é um verdadeiro escândalo que perdura desde 2011 e que foi sendo paulatinamente atenuado com algumas reduções dos preços nos últimos anos. Mas a questão fundamental não só se manteve, como se adensou. Desde a inauguração da A23, em julho de 2003, a região perdeu cerca de 60 mil habitantes, disse adeus definitivo a muitos serviços públicos, entre eles os de transportes que ficaram a rodar num território cada vez mais vazio e, logo, dependente cada vez mais do meio individual para se chegar a algum lado. Aldeias e vilas que ficaram mais isoladas, com uma população mais envelhecida e limitada na mobilidade. Se a realidade demográfica em 2003 era a que era, a de 2024 é bem pior. E a mobilidade complicou-se na exata proporção do declínio demográfico. A falta de pessoas sempre foi a suprema justificação para nada se fazer, para nada se mudar, para se sonegar o pouco que ainda existe sob o pretexto de poupanças inócuas. Sim, as portagens na Beira Interior são profundamente injustas desde o primeiro dia, mas com a sua perpetuação entrámos já no domínio da imoralidade.

QOSHE - Mobilidade e portagens - Nuno Francisco
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Mobilidade e portagens

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17.04.2024

Quando se fala em mobilidade na Beira Interior, há sempre umas utopias que, de quando em vez, se celebram, viajem elas nos carris ou no asfalto. O certo é que de utopia em utopia, chegámos à realidade da absoluta desestruturação dos serviços de transportes públicos, a funcionar nos mínimos em grande parte do território. Há muito que o binómio rentabilidade / demografia é o nosso pior inimigo e isso é bem visível também no domínio da mobilidade. Na esmagadora maioria do território da Beira Interior, a manutenção de transportes públicos a circular revela-se uma operação deficitária para as empresas que, como sabemos, têm de ser compensadas com dinheiro público para que o serviço se mantenha. Isto, porque é evidente que não se pode obrigar os operadores privados a somarem prejuízos em nome de um serviço público que não lhes cabe a eles........

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