Há uma admirável passagem plasmada, na segunda-feira, no Jornal de Notícias, citando o Expresso. A coisa escreveu-se assim: «O economista João César das Neves contesta a “certeza” de que “ao longo dos séculos a mulher foi sucessivamente oprimida e desprezada”. “Esta convicção é estranha por duas razões. A primeira é que as mulheres sempre foram a maioria da população, o que torna insólito que sejam dominadas pela minoria masculina. O segundo motivo é que essas senhoras, alegadamente tiranizadas, nunca se queixavam ou manifestavam o seu desagrado”, argumenta.» Não é uma gralha, nem a reedição de um livro de costumes da Idade Média. É mesmo assim, letra a letra, palavra a palavra, dita, escrita e lida em 2024. Ou seja, a opressão nunca poderia ter ocorrido, porque as mulheres eram, e são, em maior número que os homens e — argumento sublime! — nunca se queixaram. E se não se queixaram da opressão, então não eram oprimidas. É, de facto, bem visto por João César das Neves: Trata-se de um escândalo os preguiçosos oprimidos da história nunca se queixarem ou, pelo menos, que se tenha tido conhecimento disso. Bastava, por certo, preencherem um formulário que este seguiria para quem de direito, ou, a partir do século XIX com a invenção do telefone, bastaria ligar para uma linha de apoio para denunciar anonimamente as fontes da opressão. Melhor ainda: Votar em quem lhes desse a palavra e os defendesse — ah, mas espera lá! Por exemplo, as mulheres em muitos países não podiam sequer votar!. Mas isso é um pormenor, porque era tão fácil os oprimidos de milénios — todos — fazerem-se ouvir por entre os estalidos dos chicotes, nas masmorras, nos intervalos das torturas, por entre o preconceito e a subjugação moral e social... Se não falaram foi porque não quiseram, porque, evidentemente, podiam recusar-se e em tom acintoso dizerem simplesmente: “Alto e para o baile!”, que num assomo de consciência, os opressores tomariam como facto que andavam a fazer coisas muito feias aos seus semelhantes. Os oprimidos da História não se queixavam? É, de facto, um dos grandes mistérios da humanidade e cuja explicação ficamos à espera. Esta preciosidade pertence a uma das personalidades cujos contributos estão impressos num livro chamado “Identidade e família”, que foi apresentado no início desta semana, em Lisboa. A obra que, segundo o Expresso, se apresenta ao mundo como “um manifesto anti-progressista” foi lançada pelo ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho e contou com as contribuições do «ex-ministro das Finanças Bagão Félix (um dos coordenadores da obra), o economista César das Neves, o politólogo Jaime Nogueira Pinto, o médico psiquiatra Pedro Afonso, o ex-deputado do Parlamento Europeu pelo CDS Ribeiro e Castro e o ex-líder do partido Manuel Monteiro, com a bênção do cardeal Manuel Clemente e de outros membros do clero». Mas há mais neste manifesto “anti-progressista”. Tal como o JN faz questão de nos dizer, mais uma vez citando o Expresso, «Gonçalo Portocarrero de Almada, da Opus Dei, e cronista do “Observador”, faz a “defesa do humanismo cristão contra o totalitarismo democrático”, que diz atuar “em nome de uma suposta igualdade ou não-discriminação”». O “totalitarismo democrático”, essa outra grande chatice “progressista” que, para alguns, a história ainda não conseguiu resolver a preceito. Não a questão do totalitarismo, claro, mas a da democracia.

QOSHE - Os oprimidos não preencheram os formulários - Nuno Francisco
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Os oprimidos não preencheram os formulários

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10.04.2024

Há uma admirável passagem plasmada, na segunda-feira, no Jornal de Notícias, citando o Expresso. A coisa escreveu-se assim: «O economista João César das Neves contesta a “certeza” de que “ao longo dos séculos a mulher foi sucessivamente oprimida e desprezada”. “Esta convicção é estranha por duas razões. A primeira é que as mulheres sempre foram a maioria da população, o que torna insólito que sejam dominadas pela minoria masculina. O segundo motivo é que essas senhoras, alegadamente tiranizadas, nunca se queixavam ou manifestavam o seu desagrado”, argumenta.» Não é uma gralha, nem a reedição de um livro de costumes da Idade Média. É mesmo assim, letra a letra, palavra a palavra, dita, escrita e lida em 2024. Ou seja, a opressão nunca poderia ter ocorrido, porque as mulheres eram, e são, em maior número que os homens e — argumento........

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