Há anjinhos rubicundos a soprar trompetas no céu ou a fazer chichi nas fontes e há um menino de caracóis a colocar um cravo no cano de uma metralhadora G3. Esta é a imagem que acabaria por se tornar um ícone da revolução de 25 de abril de 1974, celebrada como a “revolução dos cravos”. Aqui se conta a história do menino, do cravo e da metralhadora e de como juntos construíram a imagem de uma revolução que derrubou uma longa ditadura e abriu caminho à democracia e à liberdade de um povo.

O menino tem hoje 54 anos e vive no Reino Unido e desavindo, mas naqueles idos de abril de 1974 tinha apenas 3 anos. Os angélicos caracóis, a t-shirt amarela e os lábios sorridentes e esforçados a colocar o cravo numa metralhadora sem rosto empunhada por um soldado do Movimento das Forças Armadas formam uma imagem poderosa.

O menino Diogo Bandeira Freire era filho do poeta e cineasta Pedro Bandeira Freire, a que muitos cinéfilos portugueses devem longos anos de filmes no Cinema Quarteto que era a sua “casa mãe”. Pedro Bandeira Freire e o seu amigo Sérgio Guimarães, fotógrafo de publicidade criaram esta imagem e este poster icónico, uma encenação, dirão muitos. Uma genial representação, riposto eu.

Além do menino Diogo, o segundo elemento deste poster é o cravo. Como é que o cravo ficou ligado ao 25 de Abril de 74? Por um mero acaso. Um acaso feito de gestos espontâneos, solidariedade e alegria.

Celeste Martins Caeiro nasceu no Socorro a 2 de maio de 1933, filha de mãe galega e de pai fugido. A sua vida nunca foi fácil. Naquele 25 de Abril de 1974, Celeste preparava-se para mais um dia de trabalho no restaurante “Sir” no edifício Franjinhas, o curioso prédio na Braancamp projetado por João Braula Reis e por Nuno Teotónio Pereira.

O “Sir” comemorava um ano e a gerência decidira oferecer aos seus clientes uma lembrança da efeméride. Um Porto para os homens, um cravo para as senhoras. Como o restaurante não abriu por causa das operações militares os empregados levaram os cravos. Ao regressar a casa Celeste passou pelo Chiado com os seus ramos de cravos vermelhos e brancos. Ali aproximou-se de um dos tanques perguntando o que se estava a passar a um dos soldados. “Nós vamos para o Carmo para deter o Marcelo Caetano. Isto é uma revolução!” Informou o soldado, que lhe pediu um cigarro. Como não tinha nem cigarros nem comida para dar, Celeste deu-lhe um cravo que o soldado colocou no cano da espingarda.

Celeste foi descendo a pé até à Igreja dos Mártires distribuindo cravos pelos soldados. E assim deste gesto simples e do acaso nasceu o símbolo da revolução, que nos dias seguintes se espalhou pelas lapelas que celebravam a liberdade e também das lapelas que, amedrontadas, fingiam agora ter aderido à liberdade. O cravo simbolizou a união do povo com o Movimento das Forças Armadas.

Uma flor com significado político em Portugal, mas que carrega uma história de simbolismo desde a época clássica greco-romana. A flor do género Dianthus, nome dado pelo botânico grego Teofrasto, é originária da Europa e da Ásia. Dianthus significa “flor de deus” ou “flor divina” sendo por isso adotada em vários rituais sagrados e cerimónias gregas e romanas, incluindo os casamentos em que os noivos usavam coroas de cravos simbolizando a beleza, o amor eterno, a fidelidade e os laços duradouros Para os cristãos os cravos vermelhos simbolizam o sangue de Cristo e no Dia da Mãe nos EUA são oferecidos cravos em sinal de gratidão e amor. Durante o seu período rosa, Picasso pintou o seu "Garçon à La Pipe" com uma coroa de cravos e a flor está presente na pintura de grandes mestres devido ao seus significados simbólicas para várias civilizações.

Existem mais de 300 espécies de cravos de diferentes cores e tamanhos e a sua utilização na medicina e na cosmética é variada. Tem propriedades antimicrobianas e antisépticas boas para a pele, antioxidantes boas para combater os radicais livres (uma irónica propriedade tendo em conta o contexto revolucionário português) e é usado em forma de óleo para tratamentos capilares, para a caspa, para a digestão e gases e também na perfumaria, graças à sua fragância rica e picante.

Como se vê, uma simples flor é um elemento fundamental na ordem natural das coisas e também na desordem, tal como uma espingarda. Símbolo da ordem militar, do poder bélico e da guerra, mas que também símbolo da violência e da desordem humana. A metralhadora que recebeu no cano o cravo original era uma G-3, a mais lendária arma portuguesa do séc. XX.

Originalmente desenhada e concebida em Espanha por Ludwing Vroglimer, antigo engenheiro da Mauser exilado no país vizinho após a derrota nazi na II Guerra Mundial, a arma era conhecida como a espingarda de combate CEMTE, sigla de Centro de Estudios Técnicos de Materiales Especiales. Foi lançada em 1949 pelo generalíssimo Franco e deriva dos estudos feitos pela Alemanha nazi para uma espingarda de assalto que nunca viu a luz do dia – a SIG45M.

Em 1956 a Alemanha comprou a licença de fabrico à CEMTE espanhola e atribui o projeto à empresa Heckler & Koch, situada em Oberndorf. O projeto foi aprovado sob a designação de G-3 (Gewehr 3) em 1959. Seria a arma adoptada pelo Exército Português por causa da Guerra Colonial. Nas primeiras missões contra a guerrilha em Moçambique e Guiné, o armamento nacional era obsoleto enquanto os guerrilheiros usavam já armas de repetição evoluídas como as AK 47 – a Kalashnikov.

Como os americanos não cederam a licença de construção da M14 por causa do embargo de Kennedy ao regime colonialista de Salazar, o Exército acabou por adquirir a licença de construção aos alemães da Heckler & Koch, passando a fabricar a G-3 na Fábrica de Braço de Prata (FBP) que produziu 442 mil espingardas destas até 1988.

Foi por isso a metralhadora da Guerra Colonial, a companheira de uma geração de combatentes portugueses. Rui Fonseca, um antigo combatente descrevia-a assim a repórter Paulo Moura numa notável reportagem para o jornal “Público”: “É uma boa arma, uma arma calibrada. Não tem escape de gases. Funciona sempre, até suja. Dormíamos com a G3. Os canhotos colocavam a arma do lado esquerdo da cama. Era a mulher que queríamos, a nossa companheira, a nossa protectora”.

A protectora arma que no dia 25 de Abril de 1974 teve um cravo de Celeste no cano, metido pelo menino dos caracóis Diogo Bandeira Freire. A espingarda fabricada para a Guerra Colonial metia naquele dia como munição o cravo que acabaria por dar o último e fatal tiro na Guerra do Ultramar onde mais de 10 mil soldados portugueses e 100 mil civis perderam a vida.

O menino, o cravo e a metralhadora G3, mais do que um poster, um símbolo da revolução e da liberdade, para Portugal e para as suas ex-colónias.




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O menino, o cravo e a metralhadora

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23.04.2024

Há anjinhos rubicundos a soprar trompetas no céu ou a fazer chichi nas fontes e há um menino de caracóis a colocar um cravo no cano de uma metralhadora G3. Esta é a imagem que acabaria por se tornar um ícone da revolução de 25 de abril de 1974, celebrada como a “revolução dos cravos”. Aqui se conta a história do menino, do cravo e da metralhadora e de como juntos construíram a imagem de uma revolução que derrubou uma longa ditadura e abriu caminho à democracia e à liberdade de um povo.

O menino tem hoje 54 anos e vive no Reino Unido e desavindo, mas naqueles idos de abril de 1974 tinha apenas 3 anos. Os angélicos caracóis, a t-shirt amarela e os lábios sorridentes e esforçados a colocar o cravo numa metralhadora sem rosto empunhada por um soldado do Movimento das Forças Armadas formam uma imagem poderosa.

O menino Diogo Bandeira Freire era filho do poeta e cineasta Pedro Bandeira Freire, a que muitos cinéfilos portugueses devem longos anos de filmes no Cinema Quarteto que era a sua “casa mãe”. Pedro Bandeira Freire e o seu amigo Sérgio Guimarães, fotógrafo de publicidade criaram esta imagem e este poster icónico, uma encenação, dirão muitos. Uma genial representação, riposto eu.

Além do menino Diogo, o segundo elemento deste poster é o cravo. Como é que o cravo ficou ligado ao 25 de Abril de 74? Por um mero acaso. Um acaso feito de gestos espontâneos, solidariedade e alegria.

Celeste Martins Caeiro nasceu no Socorro a 2 de maio de 1933, filha de mãe galega e de pai fugido. A sua vida nunca foi fácil. Naquele 25 de Abril de 1974, Celeste preparava-se para mais um dia de trabalho no restaurante “Sir” no edifício Franjinhas, o curioso prédio na Braancamp........

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