A primeira visão reconhece a sociedade como um sistema complexo de interacções assentes na confiança e em normas que resultaram da experiência de muitas gerações. A segunda visão, tipicamente marxista, é obcecada em ler a realidade na base de relações de poder e opressão, pregando a necessidade de desconstruir (ou dinamitar) os sistemas que perpetuam a dita opressão e os “preconceitos culturais”.

É importante olhar para tal distinção, já que a segunda visão teima em invadir a linguagem contemporânea, deixando muita gente desarmada perante as “certezas absolutas” e as sentenças das elites neomarxistas que narram os fenómenos sociais de cada dia.

Segundo elas, todas as opiniões que contrariem a missão de justiça social – de defesa das mulheres, minorias étnicas, raciais ou sexuais, ou outras identidades ditas oprimidas – levam o carimbo de “intolerantes” e são encaminhadas para o “corredor da morte” social, já que o inquisidor implacável acha que tem a missão de reeducar os cidadãos e de punir os intolerantes que ainda se agarram a noções como família, nação, propriedade privada, fé ou tradições.

Em vez de espaços de alguma imparcialidade, expande-se por toda a parte a influência moralizadora do Estado que descarta a dissidência enquanto ameaça. A “nova Inquisição” decreta respostas padrão para tudo e intimida os blasfemos. Vamos discutir questões bioéticas sobre os limites da vida? “Isso seria um retrocesso civilizacional”. Mencionar a vocação materna no Dia da Mulher? “É machismo”. Comemorar o dia do Pai? “Um horror… a perpetuação de linguagem heteronormativa”.

Organizar colóquios para debater os efeitos do multiculturalismo? “É discurso de ódio.” E retirar doutrinação ideológica dos currículos académicos, nomeadamente a teoria crítica de género, por ser uma ingerência moral e filosófica que nega as diferenças biológicas e a complementaridade de homem e mulher? “Seria outro retrocesso inaceitável!”.

Passo a passo, sempre em nome das suas concepções de tolerância e de justiça social, as acções de reeducação vão empobrecendo as opções de que dispomos para interpretar a realidade.

No plano puramente político, por exemplo, legitima-se a desumanização dos adversários políticos através dos piores epítetos, culminando até em recomendações de ilegalização institucional sem qualquer fundamento sólido. À soberba das elites, acresce a angústia de jovens hipersensíveis que não foram habituados à livre troca de ideias, infantilizados por um sistema que lhes apresenta a realidade já mastigada.

É provável que o ímpeto das novas gerações venha a insurgir-se contra estas tentativas de menorização intelectual, mas nem todos terão a mesma autonomia de pensamento e continuarão a ser presas fáceis das agitações revolucionárias. Veja-se como alguns alunos decidiram intimidar dois professores da Universidade Nova de Lisboa logo após às eleições legislativas, apelando a que fossem expulsos da instituição.

Ou ainda, como expressão perfeita de novo puritanismo, veja-se como o grupo Climáximo promove acções directas de desestabilização no espaço público, vandalização de propriedade e ataque às liberdades individuais, adoptando uma retórica apocalíptica contra o capitalismo e contra o homem branco ocidental.

Posto isto, existem vários motivos para resistir sem cessar à perniciosa cultura de cancelamento.

Primeiro, porque o ser humano é falível e é essencial limitar as arbitrariedades de quem detém o poder. Aliás, não só a falibilidade humana é inevitável, como geralmente as acções mais fervorosas e insensatas de cancelamento são levadas a cabo pelos agentes mais ignorantes ou desinformados de uma sociedade.

Segundo, pela importância de defender a autonomia de pensamento e o sentido crítico da sociedade. Acautelando sobretudo as consequências em crianças e jovens, a educação deve servir para promover o desenvolvimento da personalidade humana, e não para moldar novas peças úteis numa engrenagem ou para arregimentar activistas alinhados.

Terceiro, pelo dever de rejeitar o uso e abuso da fluidez e ambiguidade conceptual. Aqueles que preconizam a prática de cancelamento em nome da tolerância são incapazes de antecipar concretamente quem pretendem lançar à fogueira, o que poderá ser catalogado como “discurso de ódio” e o que constitui uma subjectiva “microagressão” numa sociedade de seres hipersensíveis. A abrangência dos cancelamentos fica ao critério dos apetites e imaginação dos inquisidores.

Quarto, pela virtude da descentralização e da concorrência da informação. A multiplicação de fontes de informação levanta novos desafios. Contudo, oferece também oportunidades de verificação e refutação por múltiplos agentes em tempo real, fora do escopo do poder e da comunicação institucional. O espaço público deve ser mais plural e rico do que uma realidade fabricada para ser confortável, caso contrário, limitamo-nos a buscar confirmações e reforçamos as nossas ideias de partida num ambiente enviesado e entediante, uma espécie de ChatGPT em grande escala.

Finalmente, e fazendo uso da palavra que os inquisidores esvaziaram de sentido, é importante resistir à cultura de cancelamento para escapar a um clima de ódio e ressentimento que cria indivíduos fechados em si mesmos, intolerantes aos riscos, viciados em lamentação e revoltados contra todas as interdependências e circunstâncias herdadas. O mundo dos riscos e das adversidades é muito mais engraçado e gratificante do que viver numa redoma de conformidade intelectual e de incompreensão da essência humana.

QOSHE - Certezas absolutas da nova Inquisição - Daniela Silva
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Certezas absolutas da nova Inquisição

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08.04.2024

A primeira visão reconhece a sociedade como um sistema complexo de interacções assentes na confiança e em normas que resultaram da experiência de muitas gerações. A segunda visão, tipicamente marxista, é obcecada em ler a realidade na base de relações de poder e opressão, pregando a necessidade de desconstruir (ou dinamitar) os sistemas que perpetuam a dita opressão e os “preconceitos culturais”.

É importante olhar para tal distinção, já que a segunda visão teima em invadir a linguagem contemporânea, deixando muita gente desarmada perante as “certezas absolutas” e as sentenças das elites neomarxistas que narram os fenómenos sociais de cada dia.

Segundo elas, todas as opiniões que contrariem a missão de justiça social – de defesa das mulheres, minorias étnicas, raciais ou sexuais, ou outras identidades ditas oprimidas – levam o carimbo de “intolerantes” e são encaminhadas para o “corredor da morte” social, já que o inquisidor implacável acha que tem a missão de reeducar os cidadãos e de punir os intolerantes que ainda se agarram a noções como família, nação, propriedade privada, fé ou tradições.

Em vez de espaços de alguma imparcialidade, expande-se por toda a parte a influência moralizadora do Estado que descarta a dissidência enquanto ameaça. A “nova Inquisição” decreta respostas padrão para tudo e intimida os blasfemos. Vamos discutir questões........

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