A entrevista de Tucker Carlson ao presidente Vladimir Putin já tem mais de 200 milhões de visualizações e tende a aumentar, deixando a imprensa à beira da apoplexia. Na sua coluna do “Financial Times“, quiçá inspirado em Hillary Clinton, Gideon Rachman acusa Carlson de ser um ‘idiota útil’. Já Anne Applebaum, escritora renomada pelos seus trabalhos sobre o comunismo e a Europa de Leste, que lhe valeram o Pulitzer 2006, acusa-o de não ser um jornalista, mas um propagandista.

Ora, se, por um lado, estas reações tempestuosas se devem à dita apoplexia mediática, por outro, também se devem ao facto de o próprio Carlson ter permanecido tanto ou mais apoplético ao longo de toda a entrevista.

O ex-jornalista da Fox não é nem nunca foi um idiota útil. Simplesmente, escolheu um lado e, ao menos, admite-o. A sua simpatia por Trump é evidente. Daí que, apesar de ver na Rússia um adversário natural, evita tê-la por inimiga. Pois, uma coisa é o confronto geopolítico entre dois poderosos adversários, no qual as disputas culturais, políticas, económicas e geográficas podem e devem ser sublimadas pela diplomacia. Outra é o fim da diplomacia, acompanhada da ameaça de extinção cultural, política, económica e geográfica do regime que decidimos ter, não só como adversário, mas como inimigo.

Pelas mesmas razões, Carlson também não é um propagandista. Ou, se o for, será de Trump, jamais de Putin. O presidente russo sabe bem disso, sabe que teria pela frente um jornalista que defende uma posição diplomática, mas de efetiva força. Basta recordar como Trump teria reagido se tivesse sido ele a decidir, na Casa Branca, a 24 de fevereiro de 2022 – se é que a invasão da Ucrânia tivesse sequer ocorrido, nessa circunstância.

Antes de mais, a NATO faria uma clara demonstração de poder, com vista a uma negociação favorável, durante a qual, Putin estaria proibido de usar a N-word (nuclear). Contudo, o fim desejado seria um acordo satisfatório para ambas as superpotências, no que respeita aos seus interesses na região. O que resultaria numa paz fundamentada na diplomacia e no equilíbrio de poder. O próprio Kissinger preferia esta abordagem (ainda que, mais tarde, se tivesse adaptado à visão dominante).

Infelizmente, a política de Biden foi outra. Ao invés da diplomacia musculada, preferiu o belicismo histérico, temerário, e a guerra by proxy. Alegando defender a Ucrânia e a própria Europa, os EUA esqueceram-se do mais importante conselho de Sun Tzu, “A excelência suprema consiste em subjugar o inimigo sem ter de lutar” (cap. III, Arte da Guerra). Naturalmente, a primeira contraofensiva ucraniana foi inevitável e até vantajosa, já que aproveitou o facto de os russos terem ido com demasiada sede ao pote, para alcançar sobre eles uma posição ascendente. Mas, para quê ganhar tal ascendente senão para negociar?

A perpetuação da guerra serviria, supostamente, para debilitar Moscovo. Porém, acabou por trazer à luz as fragilidades do Ocidente. Apesar das sanções, o FMI prevê que, em 2024, a Rússia cresça 2,6%; ou seja, 0,5% mais que os EUA (2,1%), 1,2% mais que o Canadá (1,4%), 2% mais que o Reino Unido (0,6%) e 2,1% mais que a Alemanha (0,5%).

A dívida pública americana continua a aumentar, tendo ultrapassado os 33 biliões de dólares, em setembro de 2023. Como se tal não bastasse, os decisores ocidentais continuam a tomar medidas que exponenciam a divisão e os conflitos sociais internos, desde a assistência social para a afirmação de género de menores, nos EUA, à implementação do Pacto Ecológico Europeu, que está por detrás das recorrentes greves de agricultores e camionistas, na Europa.

O ataque terrorista do Hamas, a 7 de outubro de 2023, só veio agravar a situação. Conhecida pela subtileza diplomática de um elefante numa fábrica de porcelana, a Administração Biden não sabe o que fazer com esta batata quente. Resta-lhe dar numa de cowboy, juntar tudo no mesmo pacote e desatar aos tiros por todo lado; tentando aprovar mais 88 mil milhões de dólares para a Ucrânia, Israel e, já agora, Taiwan.

“Quando um príncipe guerreiro ataca um Estado poderoso”, dizia Sun Tzu, “a sua liderança manifesta-se ao impedir a concentração das forças do inimigo.” (cap. XI, “Arte da Guerra”). Determinada, porém, a contrariar o sábio, a diplomacia americana tem reforçando como nunca a união dos próprios inimigos; à qual, inclusive, se têm juntado alguns países outrora neutrais (para não dizer ex-aliados). Recorde-se, por exemplo, que a Índia ainda não condenou a Rússia. Com efeito, até já lhe serviu de bengala para declarações internacionais isentas de “propaganda ucraniana”. Seria isto pensável há uns anos?

Escusado será dizer que é Moscovo quem tem capitalizado esta avalanche de erros crassos. Quanto mais os EUA fazem bullying pelo mundo fora, para que todos se aliem à força contra o pesadelo do monstro russo, mais o mundo repudia o Ocidente e este converte em realidade. Por este caminhar, qualquer dia temos um monstro a sério, rodeado de amiguinhos. Na zona de guerra, o mesmo se tem aplicado.

Ao largo de 2023, a Rússia deixou-se ficar na retranca, rentabilizando os erros do inimigo. Pois, da sua parte, bastaria não os cometer: “(o líder inteligente) vence as suas batalhas não cometendo erros. Não cometer erros é o que estabelece a certeza da vitória, pois significa conquistar um inimigo que já está derrotado.” (“Arte da Guerra”, cap. IV)

A entrevista de Carlson foi dar com um Putin na mó de cima. Ele sabia que o jornalista americano não era como os demais. Não iria fazer uma reportagem esquartejada ao serviço da propaganda ocidental. O trabalho seria o mais transparente possível, sem cortes, registando uma conversa fluida, em que nada poderia ser retirado do seu contexto. O mundo inteiro estaria a ver, do Oriente ao Ocidente.

Diante de si, teria a figura mediática mais popular dos EUA, neste momento, o que lhe garantiria uma audiência sem precedentes, entre o público americano. Todavia, Carlson não era seu amigo, mas a face mediática da linha de Trump; o único candidato à presidência que, pelo menos até agora, terá mostrado uma genuína vontade de negociar, caso seja eleito.

Assim, a negociação começou logo no primeiro minuto. Mal viu uma abertura, Putin disferiu um ataque velado, dizendo, entre sorrisos, que esperava que dali saísse uma entrevista séria, e não um mero talk-show. Carlson riu-se, mas não percebeu o filme.

Então, o presidente russo pediu licença para fazer um briefing histórico de um minuto. Sucede que não durou um, mas cerca de vinte cinco minutos. O que, em comunicação audiovisual, é o equivalente cronológico a umas décadas. Carlson ficou visivelmente nervoso, inquieto, perturbado, sem saber o que fazer. Nisto, tentou interrompê-lo, apenas para levar o derradeiro tabefe psicológico do presidente russo: “Então? Vamos ter uma conversa séria ou um talk-show?”

Chama-se a isto Gaslighting – uma forma de manipulação psicológica que confunde a perceção do adversário, deixando-o pouco confiante e vulnerável. Algo que o velho Sun Tzu também recomendaria, no seu capítulo sobre energia (no contexto de guerra). Ou, pelo menos, assim o interpreta o tradutor da famosa edição de 1910 de “Arte da Guerra”, Lionel Giles: “Todo o segredo está em confundir o inimigo, para que ele não consiga perceber a nossa verdadeira intenção.” (cap. V)

Carlson ficou KO. Foi ao tapete e já não se levantou. A partir desse momento, Putin teve canal aberto para transmitir, quase sem contraditório, a imagem e a narrativa que queria passar.

Primeiro, de que a Rússia é um país com uma dimensão histórica que os EUA não têm, daí que os seus líderes sejam frequentemente arrogantes e infantis.

Segundo, que em qualquer iniciativa diplomática com Ocidente ele seria inevitavelmente o único adulto na sala – sendo esta uma mensagem relevante, não só para os americanos (que se envergonham do seu atual líder), mas, sobretudo, para os russos e para todo o mundo oriental, que vê nele um líder forte.

Terceiro, que tem uma cultura, uma mundividência e uma visão da história, que os líderes ocidentais já não possuem.

Quarto, que é ele quem efetivamente manda na Rússia e em todos os aliados que se colocam sob a sua proteção, destacando-se pelo seu poder, estabilidade, maturidade e lealdade para com os seus.

Quinto, que, em contraste com o seu regime tradicional, sólido e patriótico, os EUA e demais países ocidentais não são efetivamente governados pelos seus líderes eleitos (geralmente fracos, para não dizer fantoches); mas, pelo “estado profundo” das secretas e dos interesses financeiros instalados, os quais se guiam pela sua própria agenda.

Por fim, Putin mostrou-se disponível para negociar. Mas, claro, ante uma apresentação destas, haverá alguma coisa a negociar? Só se for para dizer que “sim” a tudo. Pelo menos foi essa a expressão que vimos em Carlson. É que ficou mesmo entrevadinho. Lá está, apoplético.

Felizmente, se Trump for eleito será o próprio a assumir as negociações. E aí já outro galo cantará. Esse não precisa de ler Sun Tzu para fazer um great job, amazing job. Tem lá em casa uns 20 ‘Sun Tzus’. Os melhores ‘Sun Tzus’, the best. Todos huge, better, bigger and better, much much better que o original.

QOSHE - Carlson, Putin e os ‘Sun Tzus’ de Trump - João Ab Da Silva
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Carlson, Putin e os ‘Sun Tzus’ de Trump

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22.02.2024

A entrevista de Tucker Carlson ao presidente Vladimir Putin já tem mais de 200 milhões de visualizações e tende a aumentar, deixando a imprensa à beira da apoplexia. Na sua coluna do “Financial Times“, quiçá inspirado em Hillary Clinton, Gideon Rachman acusa Carlson de ser um ‘idiota útil’. Já Anne Applebaum, escritora renomada pelos seus trabalhos sobre o comunismo e a Europa de Leste, que lhe valeram o Pulitzer 2006, acusa-o de não ser um jornalista, mas um propagandista.

Ora, se, por um lado, estas reações tempestuosas se devem à dita apoplexia mediática, por outro, também se devem ao facto de o próprio Carlson ter permanecido tanto ou mais apoplético ao longo de toda a entrevista.

O ex-jornalista da Fox não é nem nunca foi um idiota útil. Simplesmente, escolheu um lado e, ao menos, admite-o. A sua simpatia por Trump é evidente. Daí que, apesar de ver na Rússia um adversário natural, evita tê-la por inimiga. Pois, uma coisa é o confronto geopolítico entre dois poderosos adversários, no qual as disputas culturais, políticas, económicas e geográficas podem e devem ser sublimadas pela diplomacia. Outra é o fim da diplomacia, acompanhada da ameaça de extinção cultural, política, económica e geográfica do regime que decidimos ter, não só como adversário, mas como inimigo.

Pelas mesmas razões, Carlson também não é um propagandista. Ou, se o for, será de Trump, jamais de Putin. O presidente russo sabe bem disso, sabe que teria pela frente um jornalista que defende uma posição diplomática, mas de efetiva força. Basta recordar como Trump teria reagido se tivesse sido ele a decidir, na Casa Branca, a 24 de fevereiro de 2022 – se é que a invasão da Ucrânia tivesse sequer ocorrido, nessa circunstância.

Antes de mais, a NATO faria uma clara demonstração de poder, com vista a uma negociação favorável, durante a qual, Putin estaria proibido de usar a N-word (nuclear). Contudo, o fim desejado seria um acordo satisfatório para ambas as superpotências, no que respeita aos seus interesses na região. O que resultaria numa paz fundamentada na diplomacia e no equilíbrio de poder. O próprio Kissinger preferia esta abordagem (ainda que, mais tarde, se tivesse adaptado à visão dominante).

Infelizmente, a política de Biden foi outra. Ao invés da diplomacia........

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