Na reta final da campanha eleitoral, Paulo Núncio, uma das poucas cabeças pensantes do CDS, sugeriu rever a lei do aborto. Logo as vestes se resgaram à direita – sim, à direita – e a AD resolveu acalmar as hostes, tal era o escândalo. Inclusivamente, a deputada Eva Brás Pinho veio a público garantir que a AD jamais fará oposição à esquerda com respeito a este tema (fora os outros…). E o “católico” Ventura deu o remate final com um género de ‘não e não’.

Contudo, será assim tão descabido questionar o estatuto do aborto em Portugal? Que tem ele de tão sagrado, ao ponto de se considerar irrevisível? Resolveu alguma coisa ou, pelo contrário, agravou o problema?

Entre 15 de julho e 31 de dezembro de 2007, ou seja, nos primeiros seis meses da (então) nova lei, fizeram-se 6.287 abortos. Nos seis meses seguintes, já em 2008, passaram a 7.895. Não sabemos os números totais de 2007, mas podemos usar o bom senso. Tendo como referências o segundo semestre do mesmo ano e o primeiro do ano seguinte, parece razoável estimá-los entre os 13.000 e 14.500. Independentemente das estimativas, a verdade é que, no fim de 2008, o total já ia em 18.607. Ou seja, aborto terá provavelmente aumentado entre 20 e 30% com a nova lei.

Bem sei que, salvo raras exceções, os media e a beautiful people da nossa praça nunca iriam reconhecer o óbvio. Também percebo que muitos portugueses tenham ido nos pseudoargumentos das mulheres irem presas (que não iam, todos sabemos) e de salvaguardar a saúde das mesmas. Só não entendo é como, ainda hoje, não se dão conta do quanto foram manipulados. Desde o início que a nova lei nos foi vendida como um êxito, quando, na realidade, foi um descalabro.

Em 2009, o número subiu para 19.848. Não dava para disfarçar. Só mesmo para ludibriar. Começou, então, o gaslighting: “ação de distorcer a verdade de forma a fazer outra pessoa aceitar o engano por duvidar da sua própria (perceção) memória, realidade ou sanidade.”

O “Expresso” reconheceu o aumento de “cerca de mil interrupções de gravidez” face ao ano anterior. Mas, tal poderia estar ligado à “diminuição do aborto clandestino”, segundo o coordenador do Plano Nacional de Saúde Reprodutiva, Jorge Branco. De facto, ele até estava à espera de mais, para aí de uns 20 ou 25 mil abortos.

Portanto, estava tudo bem. Tão bem, aliás, que se previa que os registos aumentassem nos dois anos seguintes. Altura em que, supostamente, as mulheres deixariam de recorrer à clandestinidade. Ou seja, pelos vistos, antes de 2007, as mulheres passavam a vida em clínicas ilegais. Não faziam outra coisa, abortavam aos magotes. Veio a lei, passaram a abortar menos. Porém, como são muito distraídas, iriam levar ainda uns quatro anos a dar-se conta de que a mesma já estava em vigor. Logo, só em 2011 é que a coisa estabilizaria.

Em 2010, passou para 20.137. Em 2011, para 20.480. Depois, diminuiu um pouco, mas manteve-se acima dos 18 mil até 2014 (não incluído). O escândalo era demasiado grande e ninguém engolia a desculpa das “mulheres distraídas”. Mas, nem por isso os portugueses acusaram qualquer pulga atrás da orelha. Como foi possível? Quantas mais provas seriam necessárias para demonstrar que a nova lei havia aumentado drasticamente a prática do aborto em Portugal?

Fez-se silêncio. Esse sim, bem mais fácil de engolir. Se ninguém dizia nada era porque não havia nada a dizer. Para quê questionar? O problema é que, quem cala, consente. Neste caso, consente em ser manipulado. Passados uns aninhos, o gaslighting veio a dobrar.

Estávamos em plena era Trump quando, em 2019, as manchetes viralizaram. Entre outros jornais, o falecido DN anunciava: “Números de abortos em Portugal é o mais baixo desde a legalização”. Já em 2020, os supostos êxitos da lei portuguesa eram apregoados no Brasil. Desde então, o mantra tem sido constantemente repetido pelos media até hoje.

Escusado será dizer, porém, que não passa de um insulto à inteligência das pessoas. Falar de números de aborto, a longo prazo, sem considerar a drástica redução de nascimentos, em Portugal, nos últimos 15 anos, é desprezar por completo o sentido crítico dos portugueses.

Terão razão em fazê-lo? Serão os portugueses assim tão crédulos e manipuláveis?

Embora o número absoluto de abortos (A) tenha reduzido desde 2012, e de forma mais clara a partir de 2014, a relação entre este e o número de nascimentos (N) conta-nos outra história. Em 2008, o número de abortos representou uma taxa de 17,7% sobre o número de nados-vivos. Desde então, em 14 anos, só 2018 (17,2%) e 2020 (17,6%), foram menos cruéis (e por décimas). Significa, portanto, que os “melhores” anos que a lei nos deu se traduziram aproximadamente em um bebé abortado por cada cinco bebés nascidos. Como é que alguém poderá considerar isto um êxito?

Este ratio leva-nos a confirmar, ao invés da narrativa que nos impingiram, aquilo que de forma intuitiva qualquer um consegue perceber. Ou seja, que o aborto simplesmente se converteu num método anticoncecional. É isto que ouvimos e constatamos no nosso dia a dia. Não faltam casos e testemunhos de conhecidos e amigos, sobretudo daqueles que trabalham em estabelecimentos de saúde.

Chama-se a isto heurística, sabedoria popular, o senso comum que Karl Popper valorizava. Pois, nos providencia intuições valiosas, desde que a nossa perceção esteja lúcida e saudável. Daí que o gaslighting propagandístico tanto a queira mutilar.

O aborto como método anticoncecional é, sobretudo, a explicação mais razoável para as elevadas taxas a lamentar em 2011 (21,1%), 2012 (21,3%), 2013 (22,1%) e 2014 (20,5%); anos particularmente afetados pela crise financeira e pela presença da troika em Portugal. As dificuldades económicas parecem, deste modo, ser um fator exponenciador do recurso ao aborto, já que pode inclusive explicar o facto de as mães estrangeiras, no nosso país, abortarem cerca de duas vezes mais que as nacionais.

Mas, é isto que queremos, o aborto como contraceção? Ou será que já nem ligamos? E se assim for, até quando? Até que ponto? Qual será a nossa linha vermelha?

Em vários Estados dos EUA, incluindo em Nova Iorque e Califórnia, é permitido abortar em todos os estágios da gravidez. Esta é a verdade prática, real. Porém, como quase tudo o que é real, nos nossos dias, é considerado desinformação e fake news da “extrema-direita”. Vejamos, então, os detalhes em que os ativistas pró-aborto pegaram, para nos fazer duvidar do óbvio – a fazer lembrar a célebre frase de Chico Marx (vestido de Groucho), “Who Ya Gonna Believe, Me or Your Own Eyes?”.

Primeiro, começam por dizer que o aborto tardio nem sequer existe. Sim, é a este ponto que insultam a inteligência das pessoas. E como? Embirrando com a expressão ‘late-term abortion’. Não é científica, dizem. Logo, não é real. Para a mente revolucionária, o mundo das palavras é mais importante que a vida concreta, sempre foi. Só falta embirrarem com o termo ‘genocídio’ – claramente pseudocientífico – ilibando assim Estaline, Mao, Pol-Pot, etc.

Entretanto, por acaso, a expressão ‘late-term abortion’ até é usada por diversos médicos e cientistas. Mas, a questão nem sequer é essa. É a forma como o lobby pró-aborto usa o rigor das palavras para fazer gaslighting, tomando as pessoas por parvas. Todos sabemos o que é um aborto tardio, e ninguém o quer legalizado, à exceção de uma reduzida minoria de fanáticos.

Depois, armam-se em virgens ofendidas, alegando ser falso que o aborto em Nova Iorque e Califórnia, entre muitos outros Estados, esteja permitido depois das 24 semanas. Menos ainda, como acusou Trump, “momentos antes do parto”. Nas palavras da Delegada Kathy Tran, “tal seria infanticídio”. E como diria Don Vito Corleone, “Afinal de contas, não somos assassinos”. Assim, o que está permitido é que se possa abortar por motivos de saúde física ou psicológica, sendo para o efeito necessário o aval de um profissional de saúde.

Ufa… ainda bem… por momentos, pensei que isto estivesse completamente descontrolado. Mas, se é preciso um aval, então, até fico surpreendido (para não dizer chocado) com o rigor draconiano das condições impostas. A continuar assim, qualquer dia não se pode abortar em lado nenhum… esses fascistas das fake news é que deviam ir todos presos!

Para quem ainda não percebeu, este é o caminho que o lobby abortista pretende impor em Portugal. Daí que, na recente campanha eleitoral, Mariana Mortágua já tenha falado em alargar o prazo para as 12 semanas – não mais, claro. Estará a mentir? Até quando iremos acreditar nestas histórias da avozinha? E os médicos, que dirão? Acham que poderão fiar-se na objeção de consciência? Não estarão informados de que a França acabou de decretar o aborto um direito constitucional?

Não, meus caros, o Paulo Núncio tem toda a razão. Rever a lei portuguesa, no sentido pró-vida, nada tem de estapafúrdio. Mais que um direito, impõe-se-nos o dever de deixar de comer gelados com a testa.

QOSHE - O dever de não comer gelados com a testa - João Ab Da Silva
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O dever de não comer gelados com a testa

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21.03.2024

Na reta final da campanha eleitoral, Paulo Núncio, uma das poucas cabeças pensantes do CDS, sugeriu rever a lei do aborto. Logo as vestes se resgaram à direita – sim, à direita – e a AD resolveu acalmar as hostes, tal era o escândalo. Inclusivamente, a deputada Eva Brás Pinho veio a público garantir que a AD jamais fará oposição à esquerda com respeito a este tema (fora os outros…). E o “católico” Ventura deu o remate final com um género de ‘não e não’.

Contudo, será assim tão descabido questionar o estatuto do aborto em Portugal? Que tem ele de tão sagrado, ao ponto de se considerar irrevisível? Resolveu alguma coisa ou, pelo contrário, agravou o problema?

Entre 15 de julho e 31 de dezembro de 2007, ou seja, nos primeiros seis meses da (então) nova lei, fizeram-se 6.287 abortos. Nos seis meses seguintes, já em 2008, passaram a 7.895. Não sabemos os números totais de 2007, mas podemos usar o bom senso. Tendo como referências o segundo semestre do mesmo ano e o primeiro do ano seguinte, parece razoável estimá-los entre os 13.000 e 14.500. Independentemente das estimativas, a verdade é que, no fim de 2008, o total já ia em 18.607. Ou seja, aborto terá provavelmente aumentado entre 20 e 30% com a nova lei.

Bem sei que, salvo raras exceções, os media e a beautiful people da nossa praça nunca iriam reconhecer o óbvio. Também percebo que muitos portugueses tenham ido nos pseudoargumentos das mulheres irem presas (que não iam, todos sabemos) e de salvaguardar a saúde das mesmas. Só não entendo é como, ainda hoje, não se dão conta do quanto foram manipulados. Desde o início que a nova lei nos foi vendida como um êxito, quando, na realidade, foi um descalabro.

Em 2009, o número subiu para 19.848. Não dava para disfarçar. Só mesmo para ludibriar. Começou, então, o gaslighting: “ação de distorcer a verdade de forma a fazer outra pessoa aceitar o engano por duvidar da sua própria (perceção) memória, realidade ou sanidade.”

O “Expresso” reconheceu o aumento de “cerca de mil interrupções de gravidez” face ao ano anterior. Mas, tal poderia estar ligado à “diminuição do aborto clandestino”, segundo o coordenador do Plano Nacional de Saúde Reprodutiva, Jorge Branco. De facto, ele até estava à espera de mais,........

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