Em busca do Estado perdido e da sua razão de existir

Não é impeditivo de se ser jovem, não alinhar, alegre e despreocupadamente, com as teses mais radicais do moderno liberalismo.

1. Ao tentar arrumar, nas já atafulhadas estantes, alguns livros que adquiri recentemente – a falta de espaço impede-me de saber logo onde encontrar um livro já antigo e mesmo um novo -, recuperei, como por milagre, uma obra que todos os que, entre nós, estão empenhados na reforma da administração pública e do Estado deveriam ler.

Não lhes pediria que estivessem de acordo com tudo o que nele se escreve e se defende.

A sua leitura poderia, no entanto, suscitar-lhes algumas reticências e, em alguns casos, mesmo alguns sobressaltos morais em relação às ideias que defendem, sem refletirem bem nas consequências que delas podem advir para muitos dos seus concidadãos.

Chama-se o livro a «Destruição do Estado» e foi escrito por um ainda jovem especialista em filosofia política francês, chamado Maroun Eddé (Ed. Bouquins, Paris, 2023).

A idade do seu autor, significa que não é impeditivo de se ser jovem não alinhar, alegre e despreocupadamente, com as teses mais radicais do moderno liberalismo.

Existem ainda, pelos vistos, jovens que estudam e comunicam com a sociedade e que não se deixaram contaminar pela vaga alegre, mas leviana, que perfila, acriticamente, as ideias menos solidárias que se têm vindo a afirmar ao longo destes últimos anos nas universidades e, principalmente, nas faculdades de economia, gestão e direito.

Alguns dos pontos do índice da referida obra apontam claramente para o seu sentido geral e para as ideias concretas que ali se expõem e defendem.

Tomemos nota:

Parte 1 -Vestígios do Poder:

1. Serviços públicos - a grande renúncia; 2. Da potência industrial à nação start-up; 3. O preço das privatizações; 4. A derrota energética.

Parte 2 – Os dirigentes contra o Estado:

5. O abandono das competências; 6. A armadilha da descentralização; 7. O momento Macron.

Parte 3 – Golpe de Estado no seio das elites:

8. O desvio da formação (ciências políticas); 9. A desafeição da alta função pública; 10. Consultores no seio do Estado; 11. O Estado capturado.

Epílogo: O Estado do Século XXI.

2. Nada, pois, de mais claro e contrário aos ventos portadores de suposta modernidade que estão a erodir, violenta e rapidamente, o que deu tanto trabalho a conceber e custou tanto sangue a alcançar.

Mas é precisamente por isso – pelo sentido contracorrente desta obra – que é importante lê-la: mesmo, ou sobretudo, pelos que não defendem nada do que ali se diz.

É que, das universidades aos media, passando por algumas igrejas de importação recente e, mesmo, por partidos que, pela sua história, julgaríamos defenderem muitos dos pontos de vista expressos no livro - mas não o fazem -, tudo o que nele se expõe e sustenta contraria as ideias dominantes.

Por isso, confrontados com toda esta exposição simples, clara e baseada em factos, ficaremos, muitos de nós – que sempre duvidámos do caminho seguido pelo neoliberalismo - reconfortados por constatarmos que não somos tão velhos e desatualizados como nos querem fazer crer.

Procurando acautelar os riscos sociais do desmantelamento do Estado, constatamos que jovens académicos e estudiosos há, também, que, afinal, são capazes de descobrir o véu escamoteador que cobre uma realidade que outros nos diziam e repetiam já não existir.

No fundo, entusiasma-nos ver que um intelectual jovem consegue, ainda, compreender como, destruindo os fundamentos do Estado e colonizando-o por aqueles que defendem interesses precisamente contrários à sua razão de existir, se destroem, sobretudo, os fundamentos de uma sociedade que tínhamos por virtuosa, mesmo que imperfeita e sempre necessitada de correção e estímulo.

No fundo, agradecemos que, por fim, nos expliquem factualmente – esclareçam todos os cidadãos - as intenções e resultados desta nova política e das funções que restam ao Estado.

Erradicando, como hoje se faz, as elites intelectuais e as bases técnicas do aparelho administrativo do Estado, impede-se, dolosamente, que ele continue a cumprir as funções essenciais para que foi criado e que dão corpo e vontade política à sociedade.

É aí que se digladiam e se equilibram, ou não, os interesses egoístas e o bem comum que coexistem numa dada sociedade.

Além de que - e isso, propositadamente, é-nos ocultado - o Estado fica igualmente incapacitado para exercer as alternativas e as tão exaltadas novas funções de regulação e controlo sobre as parcerias que estabelece com as entidades privadas que irão executar o que, dantes, eram as suas próprias obrigações e tarefas.

A decapitação do Estado – administração pública – através do aliciamento dos seus melhores quadros para ingressarem no setor privado, torna-o inábil para prosseguir, também, muitas das suas mais importantes missões atuais e, devido a essa debilidade técnica, abre, facilmente, lugar a burlas monumentais e a ocasiões geradoras de corrupção.

Não, a fuga estrategicamente organizada de técnicos do Estado para o setor privado não acontece só com os médicos do SNS.

Ela ocorre em quase todas as áreas de intervenção do Estado e segue acompanhada com o know how que tais técnicos adquiriram e guardaram e que, assim, o Estado deixa de deter e controlar.

Com um Estado debilitado na sua capacidade de executar e, por tal razão, de, igualmente, compreender os laços contratuais que cria com o setor privado, o campo onde medra a corrupção alarga-se e não há sistema judicial que a consiga refrear.

Nessa incapacidade da administração pública atual para entender plenamente – do ponto de vista económico, jurídico e técnico - os contratos que o Estado celebra com entidades privadas, cujo principal objetivo é, naturalmente, o lucro dos seus acionistas, falece, rotundamente, também, a possibilidade da tão celebrada regulação e controlo que lhe estão, agora, cometidos.

Fenece, igualmente, a consistência do sistema mais eficaz para conter a corrupção: a prevenção.

Quem não sabe fazer, não sabe prevenir e controlar as lacunas e deficiências da obra que lhe compete vigiar do ponto de vista jurídico, financeiro e técnico.

O risco de, em vez de capacitar a administração pública com bons e prestigiados quadros técnicos habilitados para fazer e, assim também, imediatamente, para regular e controlar o que ela manda fazer é, precisamente, a aposta preferencial no sistema repressivo.

O sistema repressivo, quando, a posteriori, tenta atuar, mais do que perseguir e punir alguns - poucos – que se corrompem e corrompem o Estado, pede sempre, face à sua evidente debilidade para o efeito, mais e mais meios de intrusão e vigilância sobre todos e cada um dos cidadãos.

Daí à criação de um verdadeiro Estado policial restam poucos passos: não por acaso, é a direita radical que enche a, propósito e a despropósito, a boca com a luta contra a corrupção.

1. Ao tentar arrumar, nas já atafulhadas estantes, alguns livros que adquiri recentemente – a falta de espaço impede-me de saber logo onde encontrar um livro já antigo e mesmo um novo -, recuperei, como por milagre, uma obra que todos os que, entre nós, estão empenhados na reforma da administração pública e do Estado deveriam ler.

Não lhes pediria que estivessem de acordo com tudo o que nele se escreve e se defende.

A sua leitura poderia, no entanto, suscitar-lhes algumas reticências e, em alguns casos, mesmo alguns sobressaltos morais em relação às ideias que defendem, sem refletirem bem nas consequências que delas podem advir para muitos dos seus concidadãos.

Chama-se o livro a «Destruição do Estado» e foi escrito por um ainda jovem especialista em filosofia política francês, chamado Maroun Eddé (Ed. Bouquins, Paris, 2023).

A idade do seu autor, significa que não é impeditivo de se ser jovem não alinhar, alegre e despreocupadamente, com as teses mais radicais do moderno liberalismo.

Existem ainda, pelos vistos, jovens que estudam e comunicam com a sociedade e que não se deixaram contaminar pela vaga alegre, mas leviana, que perfila, acriticamente, as ideias menos solidárias que se têm vindo a afirmar ao longo destes últimos anos nas universidades e, principalmente, nas faculdades de economia, gestão e direito.

Alguns dos pontos do índice da referida obra apontam claramente para o seu sentido geral e para as ideias concretas que ali se expõem e defendem.

Tomemos nota:

Parte 1 -Vestígios do Poder:

1. Serviços públicos - a grande renúncia; 2. Da potência industrial à nação start-up; 3. O preço das privatizações; 4. A derrota energética.

Parte 2 – Os dirigentes contra o Estado:

5. O abandono das competências; 6. A armadilha da descentralização; 7. O momento Macron.

Parte 3 – Golpe de Estado no seio das elites:

8. O desvio da formação (ciências políticas); 9. A desafeição da alta função pública; 10. Consultores no seio do Estado; 11. O Estado capturado.

Epílogo: O Estado do Século XXI.

2. Nada, pois, de mais claro e contrário aos ventos portadores de suposta modernidade que estão a erodir, violenta e rapidamente, o que deu tanto trabalho a conceber e custou tanto sangue a alcançar.

Mas é precisamente por isso – pelo sentido contracorrente desta obra – que é importante lê-la: mesmo, ou sobretudo, pelos que não defendem nada do que ali se diz.

É que, das universidades aos media, passando por algumas igrejas de importação recente e, mesmo, por partidos que, pela sua história, julgaríamos defenderem muitos dos pontos de vista expressos no livro - mas não o fazem -, tudo o que nele se expõe e sustenta contraria as ideias dominantes.

Por isso, confrontados com toda esta exposição simples, clara e baseada em factos, ficaremos, muitos de nós – que sempre duvidámos do caminho seguido pelo neoliberalismo - reconfortados por constatarmos que não somos tão velhos e desatualizados como nos querem fazer crer.

Procurando acautelar os riscos sociais do desmantelamento do Estado, constatamos que jovens académicos e estudiosos há, também, que, afinal, são capazes de descobrir o véu escamoteador que cobre uma realidade que outros nos diziam e repetiam já não existir.

No fundo, entusiasma-nos ver que um intelectual jovem consegue, ainda, compreender como, destruindo os fundamentos do Estado e colonizando-o por aqueles que defendem interesses precisamente contrários à sua razão de existir, se destroem, sobretudo, os fundamentos de uma sociedade que tínhamos por virtuosa, mesmo que imperfeita e sempre necessitada de correção e estímulo.

No fundo, agradecemos que, por fim, nos expliquem factualmente – esclareçam todos os cidadãos - as intenções e resultados desta nova política e das funções que restam ao Estado.

Erradicando, como hoje se faz, as elites intelectuais e as bases técnicas do aparelho administrativo do Estado, impede-se, dolosamente, que ele continue a cumprir as funções essenciais para que foi criado e que dão corpo e vontade política à sociedade.

É aí que se digladiam e se equilibram, ou não, os interesses egoístas e o bem comum que coexistem numa dada sociedade.

Além de que - e isso, propositadamente, é-nos ocultado - o Estado fica igualmente incapacitado para exercer as alternativas e as tão exaltadas novas funções de regulação e controlo sobre as parcerias que estabelece com as entidades privadas que irão executar o que, dantes, eram as suas próprias obrigações e tarefas.

A decapitação do Estado – administração pública – através do aliciamento dos seus melhores quadros para ingressarem no setor privado, torna-o inábil para prosseguir, também, muitas das suas mais importantes missões atuais e, devido a essa debilidade técnica, abre, facilmente, lugar a burlas monumentais e a ocasiões geradoras de corrupção.

Não, a fuga estrategicamente organizada de técnicos do Estado para o setor privado não acontece só com os médicos do SNS.

Ela ocorre em quase todas as áreas de intervenção do Estado e segue acompanhada com o know how que tais técnicos adquiriram e guardaram e que, assim, o Estado deixa de deter e controlar.

Com um Estado debilitado na sua capacidade de executar e, por tal razão, de, igualmente, compreender os laços contratuais que cria com o setor privado, o campo onde medra a corrupção alarga-se e não há sistema judicial que a consiga refrear.

Nessa incapacidade da administração pública atual para entender plenamente – do ponto de vista económico, jurídico e técnico - os contratos que o Estado celebra com entidades privadas, cujo principal objetivo é, naturalmente, o lucro dos seus acionistas, falece, rotundamente, também, a possibilidade da tão celebrada regulação e controlo que lhe estão, agora, cometidos.

Fenece, igualmente, a consistência do sistema mais eficaz para conter a corrupção: a prevenção.

Quem não sabe fazer, não sabe prevenir e controlar as lacunas e deficiências da obra que lhe compete vigiar do ponto de vista jurídico, financeiro e técnico.

O risco de, em vez de capacitar a administração pública com bons e prestigiados quadros técnicos habilitados para fazer e, assim também, imediatamente, para regular e controlar o que ela manda fazer é, precisamente, a aposta preferencial no sistema repressivo.

O sistema repressivo, quando, a posteriori, tenta atuar, mais do que perseguir e punir alguns - poucos – que se corrompem e corrompem o Estado, pede sempre, face à sua evidente debilidade para o efeito, mais e mais meios de intrusão e vigilância sobre todos e cada um dos cidadãos.

Daí à criação de um verdadeiro Estado policial restam poucos passos: não por acaso, é a direita radical que enche a, propósito e a despropósito, a boca com a luta contra a corrupção.

Os atrasos do PPR e a crise na Habitação

Uma herança pesada para o novo governo.

Funcionários da Cimpor iniciam greve de quatro dias

A paralisação começa esta segunda-feira, com os trabalhadores a reinvidicar aumentos salariais de 8%, 37 horas semana

Vania Baldi. A indústria da inconsciência

Em Otimizados e Desencontrados, este autor italiano explora o quadro de devastação íntima e cultural que a p

A Vida e a Lei

Em busca do Estado perdido e da sua razão de existir

Não é impeditivo de se ser jovem, não alinhar, alegre e despreocupadamente, com as teses mais radicais do moderno lib

Na Linha da Frente

Língua envergonhada

As grandes empresas, aplicações e sites oferecem na sua grande maioria conteúdos dobrados para português do Brasil e

Por Uma Democracia de Qualidade

Os indispensáveis Círculos Uninominais

António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa sabiam muito bem o que estavam a fazer quando exigiram que fossem introduz

Rédea Solta

A mancha

Montenegro ia muito bem, até surgir uma trapalhada que lembra o método ilusionista do “costismo” que o país enjoou.

QOSHE - Em busca do Estado perdido e da sua razão de existir - António Cluny
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Em busca do Estado perdido e da sua razão de existir

15 2
16.04.2024

Em busca do Estado perdido e da sua razão de existir

Não é impeditivo de se ser jovem, não alinhar, alegre e despreocupadamente, com as teses mais radicais do moderno liberalismo.

1. Ao tentar arrumar, nas já atafulhadas estantes, alguns livros que adquiri recentemente – a falta de espaço impede-me de saber logo onde encontrar um livro já antigo e mesmo um novo -, recuperei, como por milagre, uma obra que todos os que, entre nós, estão empenhados na reforma da administração pública e do Estado deveriam ler.

Não lhes pediria que estivessem de acordo com tudo o que nele se escreve e se defende.

A sua leitura poderia, no entanto, suscitar-lhes algumas reticências e, em alguns casos, mesmo alguns sobressaltos morais em relação às ideias que defendem, sem refletirem bem nas consequências que delas podem advir para muitos dos seus concidadãos.

Chama-se o livro a «Destruição do Estado» e foi escrito por um ainda jovem especialista em filosofia política francês, chamado Maroun Eddé (Ed. Bouquins, Paris, 2023).

A idade do seu autor, significa que não é impeditivo de se ser jovem não alinhar, alegre e despreocupadamente, com as teses mais radicais do moderno liberalismo.

Existem ainda, pelos vistos, jovens que estudam e comunicam com a sociedade e que não se deixaram contaminar pela vaga alegre, mas leviana, que perfila, acriticamente, as ideias menos solidárias que se têm vindo a afirmar ao longo destes últimos anos nas universidades e, principalmente, nas faculdades de economia, gestão e direito.

Alguns dos pontos do índice da referida obra apontam claramente para o seu sentido geral e para as ideias concretas que ali se expõem e defendem.

Tomemos nota:

Parte 1 -Vestígios do Poder:

1. Serviços públicos - a grande renúncia; 2. Da potência industrial à nação start-up; 3. O preço das privatizações; 4. A derrota energética.

Parte 2 – Os dirigentes contra o Estado:

5. O abandono das competências; 6. A armadilha da descentralização; 7. O momento Macron.

Parte 3 – Golpe de Estado no seio das elites:

8. O desvio da formação (ciências políticas); 9. A desafeição da alta função pública; 10. Consultores no seio do Estado; 11. O Estado capturado.

Epílogo: O Estado do Século XXI.

2. Nada, pois, de mais claro e contrário aos ventos portadores de suposta modernidade que estão a erodir, violenta e rapidamente, o que deu tanto trabalho a conceber e custou tanto sangue a alcançar.

Mas é precisamente por isso – pelo sentido contracorrente desta obra – que é importante lê-la: mesmo, ou sobretudo, pelos que não defendem nada do que ali se diz.

É que, das universidades aos media, passando por algumas igrejas de importação recente e, mesmo, por partidos que, pela sua história, julgaríamos defenderem muitos dos pontos de vista expressos no livro - mas não o fazem -, tudo o que nele se expõe e sustenta contraria as ideias dominantes.

Por isso, confrontados com toda esta exposição simples, clara e baseada em factos, ficaremos, muitos de nós – que sempre duvidámos do caminho seguido pelo neoliberalismo - reconfortados por constatarmos que não somos tão velhos e desatualizados como nos querem fazer crer.

Procurando acautelar os riscos sociais do desmantelamento do Estado, constatamos que jovens académicos e estudiosos há, também, que, afinal, são capazes de descobrir o véu escamoteador que cobre uma realidade que outros nos diziam e repetiam já não existir.

No fundo, entusiasma-nos ver que um intelectual jovem consegue, ainda, compreender como, destruindo os fundamentos do Estado e colonizando-o por aqueles que defendem interesses precisamente contrários à sua razão de existir, se destroem, sobretudo, os fundamentos de uma sociedade que tínhamos por virtuosa, mesmo que........

© Jornal i


Get it on Google Play