Traídos pelo quotidiano

Sem uma visão estratégica consolidada, o quotidiano tenderá a continuar a fazer das suas a quem navega à vista, até ao virar da esquina, apenas focada na sobrevivência política face à inconsistência do exercício, entre o truque e a tática, depois da habilidade e dos habilidosos.

Não será caso único, mas de tanto insistir e persistir na mera gestão do quotidiano, em modo de sobrevivência política, primeiro, para superar a derrota eleitoral de 2015, através de uma solução governativa plena de contradições e divergências com a matriz histórica do PS, depois, para gerir as circunstâncias únicas de que dispunha, estabilidade política e recursos financeiro, a liderança política de António Costa conduziu o partido a um beco quase sem saída. É claro que o imediatismo da devolução de recursos depois da Troika e da navegação à vista com o pecúlio europeu, as dinâmicas económicas e a carga fiscal, produziram resultados positivos em amplos segmentos da sociedade portuguesa. É evidente que as adversidades da pandemia, das guerras e da inflação foram desafios para o exercício político e não um qualquer pretexto positivo como desastradamente enunciou Manuela Ferreira Leite, numa expressão bacoca de total falta de humanismo em relação às perdas ocorridas.

O deslaço do exercício político, afirmativo nas questões do imediato ou do simbólico, mas desastrado no conteúdo e na forma do que era mais perene e estrutural, começou com o desleixo na formação do governo e das cartas brancas dadas aos ministros para as escolhas dos secretários de Estado prosseguindo depois pelos sucessivos casos e sinais negativos que emergiam das dinâmicas da governação, da sociedade e do país. O triunfo da habilidade, da tática, da manigância política, da narrativa desfasada da realidade e da marinada seletiva dos problemas, a par da resolução dos rotulados de importantes para a sobrevivência, esteve sempre presente e foi denunciado atempadamente neste espaço de uma década de artigos semanais. Só não viu quem não quis. Só não agiu quem estava confortável com um ponto de equilíbrio que servindo os interesses pessoais, não tinha correspondência com as necessidades reais do país, face aos problemas estruturais, às disfunções de instituições e pilares fundamentais da sociedade e à emergência de novas realidades. Perante novos quadros de referências continuou-se a agir como sempre, apesar das narrativas progressistas, de metas ambiciosas e da existência de condições para fazer como nunca (estabilidade e dinheiro), faltou critério nas opções políticas, explicação no sentido da governação e capacidade de concretização.

Prova dessa armadilha da gestão corrente do quotidiano é o exercício da gestão das contas públicas para o previsível horizonte de estabilidade de uma legislatura. Apertar o garrote nos primeiros dois anos do mandato, com PRR e alguns desapertos orçamentais, com marcas de propaganda para consolidação das contas certas, ainda que rapidamente alteradas pelas dinâmicas da dívida pública em gestão sustentada, para depois concretizar um final de mandato em grande, com forte capacidade de distribuição de boas notícias e recursos, que sustente até uma mudança de liderança política a meio, as eleições europeias e as autárquicas. Mais do que a mera gestão do quotidiano ou, no máximo, de um horizonte de uma legislatura, a indiferença face aos sinais de erosão da confiança eleitoral e à degradação do exercício político acabaram por implodir a estratégia, com evidentes danos no sistema político, no Estado de Direito e na democracia. De pouco valeu uma certa presunção de intocabilidade pelo acervo de convergências do percurso político construído ao longo dos anos, dos media à justiça, e pelos afagos materializados, alguns dos quais, como o do suplemento à PJ, totalmente incendiários para os interesses e expetativas em presença.

O drama maior, sob o ponto de vista partidário e político, não será a traição do quotidiano à estratégia seguida pelo mentor, mas os sucessivos abalos de oportunidade e de inconsistência que os pecúlios acumulados podem gerar para o futuro. Alguém vai distribuir o acumulado, vai gerar compromisso, apagar as memórias de outros passados e entrar em segmentos eleitorais, entretanto fidelizados. Na gestão do quotidiano e na manutenção dos ativos eleitorais, o encalço revelou-se um desastre. A casa onde não há pão – poder -, com as tensões evidentes de perspetivas e de perfil partidário, tenderá a agravar o quadro, quer nas moderações, quer nas derivas de radicalização à esquerda. Sem uma visão estratégica consolidada, o quotidiano tenderá a continuar a fazer das suas a quem navega à vista, até ao virar da esquina, apenas focada na sobrevivência política face à inconsistência do exercício, entre o truque e a tática, depois da habilidade e dos habilidosos. Depois dos tramados pelo quotidiano, teremos os traídos pelas circunstâncias.

NOTA FINAL

O RETIRO DE JOSÉ CONTENTE. Agora que os ciclos políticos se encerraram nos Açores e na República, não posso deixar de sublinhar a reforma da política ativa de José Contente. O PS e o país cuidam mal dos seus ativos de conhecimento, de experiência e de capacidade de concretização. O tal saber fazer que tanta falta faz. José Contente foi Secretário Regional no Governo dos Açores entre 1996 e 2012, membro da Assembleia Legislativa Regional entre 2013 e 2023 e coordenador de boa arte das campanhas eleitorais do PS/Açores durante mais de uma década, com um saber e competência que lhe granjearam a alcunha de “Jorge Coelho dos Açores”. A par de marcas positivas regionais incontornáveis nas infraestruturas rodoviárias, na habitação, na proteção civil – prevenção e respostas às catástrofes-, na coesão regional, na afirmação estratégica dos Açores como espaço de ciência e de futuro, por exemplo na aeronáutica, manteve um compromisso com a vocação do ensino e da docência, reforçado com o doutoramento e a vice-presidência da Associação Portuguesa Educação em Ciências. O José Contente podia e deveria ter sido muito mais na Região e no País, pelo que fez, pelo valor acrescentado que transporta e pela escassez de personalidades que sabem conjugar com senso e sentido de futuro, o conhecimento, a experiência e a sintonia com as pessoas e as realidades, nas necessidades e nas ambições. O político, o académico doutorado e o Ser Humano José Contente será sempre muito mais do que foi para os que tiveram e têm o privilégio de com ele interagir. É esse ser alguma coisa, presente na sua frase de que “Só amadurece quem ultrapassa a fase do ter alguma coisa para a fase do ser alguma coisa!”. O tempo dará espaço para o adequado reconhecimento da relevância passada e presente. O mesmo que tarda em projetar a assertividade do pensamento de Antero de Quental também amiúde invocada: “A tolerância não é permissividade nem o rigor é intransigência”. Bom descanso ativo, andando por aí.

Não será caso único, mas de tanto insistir e persistir na mera gestão do quotidiano, em modo de sobrevivência política, primeiro, para superar a derrota eleitoral de 2015, através de uma solução governativa plena de contradições e divergências com a matriz histórica do PS, depois, para gerir as circunstâncias únicas de que dispunha, estabilidade política e recursos financeiro, a liderança política de António Costa conduziu o partido a um beco quase sem saída. É claro que o imediatismo da devolução de recursos depois da Troika e da navegação à vista com o pecúlio europeu, as dinâmicas económicas e a carga fiscal, produziram resultados positivos em amplos segmentos da sociedade portuguesa. É evidente que as adversidades da pandemia, das guerras e da inflação foram desafios para o exercício político e não um qualquer pretexto positivo como desastradamente enunciou Manuela Ferreira Leite, numa expressão bacoca de total falta de humanismo em relação às perdas ocorridas.

O deslaço do exercício político, afirmativo nas questões do imediato ou do simbólico, mas desastrado no conteúdo e na forma do que era mais perene e estrutural, começou com o desleixo na formação do governo e das cartas brancas dadas aos ministros para as escolhas dos secretários de Estado prosseguindo depois pelos sucessivos casos e sinais negativos que emergiam das dinâmicas da governação, da sociedade e do país. O triunfo da habilidade, da tática, da manigância política, da narrativa desfasada da realidade e da marinada seletiva dos problemas, a par da resolução dos rotulados de importantes para a sobrevivência, esteve sempre presente e foi denunciado atempadamente neste espaço de uma década de artigos semanais. Só não viu quem não quis. Só não agiu quem estava confortável com um ponto de equilíbrio que servindo os interesses pessoais, não tinha correspondência com as necessidades reais do país, face aos problemas estruturais, às disfunções de instituições e pilares fundamentais da sociedade e à emergência de novas realidades. Perante novos quadros de referências continuou-se a agir como sempre, apesar das narrativas progressistas, de metas ambiciosas e da existência de condições para fazer como nunca (estabilidade e dinheiro), faltou critério nas opções políticas, explicação no sentido da governação e capacidade de concretização.

Prova dessa armadilha da gestão corrente do quotidiano é o exercício da gestão das contas públicas para o previsível horizonte de estabilidade de uma legislatura. Apertar o garrote nos primeiros dois anos do mandato, com PRR e alguns desapertos orçamentais, com marcas de propaganda para consolidação das contas certas, ainda que rapidamente alteradas pelas dinâmicas da dívida pública em gestão sustentada, para depois concretizar um final de mandato em grande, com forte capacidade de distribuição de boas notícias e recursos, que sustente até uma mudança de liderança política a meio, as eleições europeias e as autárquicas. Mais do que a mera gestão do quotidiano ou, no máximo, de um horizonte de uma legislatura, a indiferença face aos sinais de erosão da confiança eleitoral e à degradação do exercício político acabaram por implodir a estratégia, com evidentes danos no sistema político, no Estado de Direito e na democracia. De pouco valeu uma certa presunção de intocabilidade pelo acervo de convergências do percurso político construído ao longo dos anos, dos media à justiça, e pelos afagos materializados, alguns dos quais, como o do suplemento à PJ, totalmente incendiários para os interesses e expetativas em presença.

O drama maior, sob o ponto de vista partidário e político, não será a traição do quotidiano à estratégia seguida pelo mentor, mas os sucessivos abalos de oportunidade e de inconsistência que os pecúlios acumulados podem gerar para o futuro. Alguém vai distribuir o acumulado, vai gerar compromisso, apagar as memórias de outros passados e entrar em segmentos eleitorais, entretanto fidelizados. Na gestão do quotidiano e na manutenção dos ativos eleitorais, o encalço revelou-se um desastre. A casa onde não há pão – poder -, com as tensões evidentes de perspetivas e de perfil partidário, tenderá a agravar o quadro, quer nas moderações, quer nas derivas de radicalização à esquerda. Sem uma visão estratégica consolidada, o quotidiano tenderá a continuar a fazer das suas a quem navega à vista, até ao virar da esquina, apenas focada na sobrevivência política face à inconsistência do exercício, entre o truque e a tática, depois da habilidade e dos habilidosos. Depois dos tramados pelo quotidiano, teremos os traídos pelas circunstâncias.

NOTA FINAL

O RETIRO DE JOSÉ CONTENTE. Agora que os ciclos políticos se encerraram nos Açores e na República, não posso deixar de sublinhar a reforma da política ativa de José Contente. O PS e o país cuidam mal dos seus ativos de conhecimento, de experiência e de capacidade de concretização. O tal saber fazer que tanta falta faz. José Contente foi Secretário Regional no Governo dos Açores entre 1996 e 2012, membro da Assembleia Legislativa Regional entre 2013 e 2023 e coordenador de boa arte das campanhas eleitorais do PS/Açores durante mais de uma década, com um saber e competência que lhe granjearam a alcunha de “Jorge Coelho dos Açores”. A par de marcas positivas regionais incontornáveis nas infraestruturas rodoviárias, na habitação, na proteção civil – prevenção e respostas às catástrofes-, na coesão regional, na afirmação estratégica dos Açores como espaço de ciência e de futuro, por exemplo na aeronáutica, manteve um compromisso com a vocação do ensino e da docência, reforçado com o doutoramento e a vice-presidência da Associação Portuguesa Educação em Ciências. O José Contente podia e deveria ter sido muito mais na Região e no País, pelo que fez, pelo valor acrescentado que transporta e pela escassez de personalidades que sabem conjugar com senso e sentido de futuro, o conhecimento, a experiência e a sintonia com as pessoas e as realidades, nas necessidades e nas ambições. O político, o académico doutorado e o Ser Humano José Contente será sempre muito mais do que foi para os que tiveram e têm o privilégio de com ele interagir. É esse ser alguma coisa, presente na sua frase de que “Só amadurece quem ultrapassa a fase do ter alguma coisa para a fase do ser alguma coisa!”. O tempo dará espaço para o adequado reconhecimento da relevância passada e presente. O mesmo que tarda em projetar a assertividade do pensamento de Antero de Quental também amiúde invocada: “A tolerância não é permissividade nem o rigor é intransigência”. Bom descanso ativo, andando por aí.

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26.03.2024

Traídos pelo quotidiano

Sem uma visão estratégica consolidada, o quotidiano tenderá a continuar a fazer das suas a quem navega à vista, até ao virar da esquina, apenas focada na sobrevivência política face à inconsistência do exercício, entre o truque e a tática, depois da habilidade e dos habilidosos.

Não será caso único, mas de tanto insistir e persistir na mera gestão do quotidiano, em modo de sobrevivência política, primeiro, para superar a derrota eleitoral de 2015, através de uma solução governativa plena de contradições e divergências com a matriz histórica do PS, depois, para gerir as circunstâncias únicas de que dispunha, estabilidade política e recursos financeiro, a liderança política de António Costa conduziu o partido a um beco quase sem saída. É claro que o imediatismo da devolução de recursos depois da Troika e da navegação à vista com o pecúlio europeu, as dinâmicas económicas e a carga fiscal, produziram resultados positivos em amplos segmentos da sociedade portuguesa. É evidente que as adversidades da pandemia, das guerras e da inflação foram desafios para o exercício político e não um qualquer pretexto positivo como desastradamente enunciou Manuela Ferreira Leite, numa expressão bacoca de total falta de humanismo em relação às perdas ocorridas.

O deslaço do exercício político, afirmativo nas questões do imediato ou do simbólico, mas desastrado no conteúdo e na forma do que era mais perene e estrutural, começou com o desleixo na formação do governo e das cartas brancas dadas aos ministros para as escolhas dos secretários de Estado prosseguindo depois pelos sucessivos casos e sinais negativos que emergiam das dinâmicas da governação, da sociedade e do país. O triunfo da habilidade, da tática, da manigância política, da narrativa desfasada da realidade e da marinada seletiva dos problemas, a par da resolução dos rotulados de importantes para a sobrevivência, esteve sempre presente e foi denunciado atempadamente neste espaço de uma década de artigos semanais. Só não viu quem não quis. Só não agiu quem estava confortável com um ponto de equilíbrio que servindo os interesses pessoais, não tinha correspondência com as necessidades reais do país, face aos problemas estruturais, às disfunções de instituições e pilares fundamentais da sociedade e à emergência de novas realidades. Perante novos quadros de referências continuou-se a agir como sempre, apesar das narrativas progressistas, de metas ambiciosas e da existência de condições para fazer como nunca (estabilidade e dinheiro), faltou critério nas opções políticas, explicação no sentido da governação e capacidade de concretização.

Prova dessa armadilha da gestão corrente do quotidiano é o exercício da gestão das contas públicas para o previsível horizonte de estabilidade de uma legislatura. Apertar o garrote nos primeiros dois anos do mandato, com PRR e alguns desapertos orçamentais, com marcas de propaganda para consolidação das contas certas, ainda que rapidamente alteradas pelas dinâmicas da dívida pública em gestão sustentada, para depois concretizar um final de mandato em grande, com forte capacidade de distribuição de boas notícias e recursos, que sustente até uma mudança de liderança política a meio, as eleições europeias e as autárquicas. Mais do que a mera gestão do quotidiano ou, no máximo, de um horizonte de uma legislatura, a indiferença face aos sinais de erosão da confiança eleitoral e à degradação do exercício político acabaram por implodir a estratégia, com evidentes danos no sistema político, no Estado de Direito e na democracia. De pouco valeu........

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