Óleos microbianos: uma alternativa para acelerar a transição energética e a valorização de resíduos?

Óleos microbianos: uma alternativa para acelerar a transição energética e a valorização de resíduos?

Isabel Sá-Correia 09/01/2024 09:32

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Diversos microrganismos podem acumular elevadas concentrações de lípidos que apresentam um perfil de ácidos gordos muito semelhante ao dos óleos vegetais utilizados na produção de biodiesel.

No rescaldo da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP28) emerge uma ideia clara: não é mais possível ignorar a grave crise global, bem expressa na crise climática, e há que abandonar uma economia assente nos combustíveis fósseis. O mundo encontra-se hoje extremamente dependente do petróleo, carvão, e gás, para a mobilidade (aeronaves, navios da marinha mercante e passageiros, camiões e automóveis), atividade industrial e climatização, responsáveis pela grande maioria das emissões globais de gases com efeito de estufa, sendo os transportes as maiores fontes. A produção de diesel, ou gasóleo, com base na utilização de óleos vegetais alimentares virgens (palma, soja, colza e outros) foi considerada uma alterativa verde ao diesel derivado da refinação do petróleo. Contudo, o uso desse biodiesel de 1.ª geração é contraproducente pois a necessária expansão das plantações conduziu a alterações no uso do solo e desflorestação de florestas tropicais com um impacto devastador na biodiversidade, para além do aumento de emissões líquidas de gases com efeito de estufa. Sendo este biodiesel pior para o clima e o ambiente do que o diesel fóssil, é irracional qualquer apoio político à sua produção, como aconteceu. Na mais recente política adotada pela União Europeia, os biocombustíveis com base em culturas alimentares ficam limitados e deverão ser gradualmente eliminados das metas renováveis, o mais tardar até 2030. O foco é no desenvolvimento de biocombustíveis a partir de resíduos com utilização de óleos usados e gordura animal. Sendo a eletrificação um processo lento e outras alternativas, como a do hidrogénio, estarem ainda na sua infância, o aumento da incorporação de biocombustíveis é um complemento fundamental para acelerar a transição energética. Podem utilizar as infraestruturas existentes, reduzir a dependência energética, valorizar resíduos e potenciar a indústria nacional.

A Biotecnologia permite o desenvolvimento de processos biológicos adequados à exploração alternativa e sustentável de novas vias para a produção de compostos que hoje se encontram disponíveis como produtos da indústria petroquímica. Neste artigo, tratarei apenas do seu potencial para a produção de biodiesel e combustível sustentável para aviação e barcos. Diversos microrganismos tais como leveduras, microalgas, fungos filamentosos e bactérias, podem acumular, intracelularmente, elevadas concentrações de lípidos. Esses óleos apresentam um perfil de ácidos gordos muito semelhante ao dos óleos vegetais utilizados na produção de biodiesel de primeira geração. Além disso, inclui ácidos gordos essenciais, não sintetizados por mamíferos. Por isso, o óleo microbiano para além do seu potencial como alternativa na fabricação de biodiesel e outros biocombustíveis, oferece interessantes aplicações de maior valor acrescentado nas áreas farmacêutica, cosmética e alimentar. O número de grandes empresas que atuam, de forma consolidada, na produção e utilização de lípidos microbianos no espaço europeu, Estados Uniddos da América, China, Japão e Índia indicam o potencial deste mercado.

As leveduras ditas oleaginosas (acumulam mais de 20% do seu peso seco em lípidos, podendo atingir 70% - 80%) são os microrganismos mais promissores para a síntese de óleos comparáveis aos óleos vegetais para biodiesel. São fábricas celulares muito exploradas na indústria biotecnológica, tendo capacidade para assimilar diversas fontes de carbono e azoto com elevados rendimentos celulares em ciclos curtos de crescimento. Além disso, é possível a sua produção controlada em biorreactores não exigindo grandes áreas de cultivo nem sendo limitada pelo clima. Nos últimos anos, a investigação internacional dedicada a leveduras oleaginosas tem estado muitíssimo ativa, tendo conduzido a avanços significativos. Em Portugal, existe também elevada competência neste domínio, com projetos de Investigação e Desenvolvimento (I&D) financiados, entre os quais projetos mobilizadores, como foi o caso do Move2LowC (1). No entanto, a produção de biocombustível com base em óleos microbianos tem sido limitada pelo elevado custo das matérias-primas que pode representar cerca de 40% das despesas globais. A redução do custo de produção é, pois, essencial. Vários estudos indicam que a recuperação e valorização de resíduos agroindustriais, resíduos agrícolas e florestais e resíduos industriais, como é o caso do glicerol bruto, podem conduzir a uma tecnologia de produção de biocombustível viável e sustentável. É, nomeadamente, o caso de matérias-primas abundantes como os resíduos lenhocelulósicos, apesar das limitações técnicas dos processos de desconstrução da matéria prima com geração, durante esse tratamento, de vários compostos inibidores do metabolismo das leveduras. Por isso, o desenvolvimento de leveduras mais robustas faz parte dos desafios. A exploração de uma estratégia de biorrefinaria multiproduto, onde diversos coprodutos são gerados em conjunto com os lípidos, é recomendada para garantir a viabilidade económica global da produção de biocombustível. O metabolismo de leveduras oleaginosas permite a coprodução, por exemplo, de carotenoides, ácidos orgânicos, proteínas. Após extração dos lípidos, a biomassa microbiana resultante pode ainda ser usada para ração animal ou submetida a processamento adicional para obter aminoácidos ou péptidos. Acresce que, legislação, políticas e regulamentação consistentes, bem como o apoio à expansão de negócios de base biológica, são outros fatores essenciais para impulsionar esta bioindústria.

(1) https://www.move2lowc.com/

Professora Emérita do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa

No rescaldo da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP28) emerge uma ideia clara: não é mais possível ignorar a grave crise global, bem expressa na crise climática, e há que abandonar uma economia assente nos combustíveis fósseis. O mundo encontra-se hoje extremamente dependente do petróleo, carvão, e gás, para a mobilidade (aeronaves, navios da marinha mercante e passageiros, camiões e automóveis), atividade industrial e climatização, responsáveis pela grande maioria das emissões globais de gases com efeito de estufa, sendo os transportes as maiores fontes. A produção de diesel, ou gasóleo, com base na utilização de óleos vegetais alimentares virgens (palma, soja, colza e outros) foi considerada uma alterativa verde ao diesel derivado da refinação do petróleo. Contudo, o uso desse biodiesel de 1.ª geração é contraproducente pois a necessária expansão das plantações conduziu a alterações no uso do solo e desflorestação de florestas tropicais com um impacto devastador na biodiversidade, para além do aumento de emissões líquidas de gases com efeito de estufa. Sendo este biodiesel pior para o clima e o ambiente do que o diesel fóssil, é irracional qualquer apoio político à sua produção, como aconteceu. Na mais recente política adotada pela União Europeia, os biocombustíveis com base em culturas alimentares ficam limitados e deverão ser gradualmente eliminados das metas renováveis, o mais tardar até 2030. O foco é no desenvolvimento de biocombustíveis a partir de resíduos com utilização de óleos usados e gordura animal. Sendo a eletrificação um processo lento e outras alternativas, como a do hidrogénio, estarem ainda na sua infância, o aumento da incorporação de biocombustíveis é um complemento fundamental para acelerar a transição energética. Podem utilizar as infraestruturas existentes, reduzir a dependência energética, valorizar resíduos e potenciar a indústria nacional.

A Biotecnologia permite o desenvolvimento de processos biológicos adequados à exploração alternativa e sustentável de novas vias para a produção de compostos que hoje se encontram disponíveis como produtos da indústria petroquímica. Neste artigo, tratarei apenas do seu potencial para a produção de biodiesel e combustível sustentável para aviação e barcos. Diversos microrganismos tais como leveduras, microalgas, fungos filamentosos e bactérias, podem acumular, intracelularmente, elevadas concentrações de lípidos. Esses óleos apresentam um perfil de ácidos gordos muito semelhante ao dos óleos vegetais utilizados na produção de biodiesel de primeira geração. Além disso, inclui ácidos gordos essenciais, não sintetizados por mamíferos. Por isso, o óleo microbiano para além do seu potencial como alternativa na fabricação de biodiesel e outros biocombustíveis, oferece interessantes aplicações de maior valor acrescentado nas áreas farmacêutica, cosmética e alimentar. O número de grandes empresas que atuam, de forma consolidada, na produção e utilização de lípidos microbianos no espaço europeu, Estados Uniddos da América, China, Japão e Índia indicam o potencial deste mercado.

As leveduras ditas oleaginosas (acumulam mais de 20% do seu peso seco em lípidos, podendo atingir 70% - 80%) são os microrganismos mais promissores para a síntese de óleos comparáveis aos óleos vegetais para biodiesel. São fábricas celulares muito exploradas na indústria biotecnológica, tendo capacidade para assimilar diversas fontes de carbono e azoto com elevados rendimentos celulares em ciclos curtos de crescimento. Além disso, é possível a sua produção controlada em biorreactores não exigindo grandes áreas de cultivo nem sendo limitada pelo clima. Nos últimos anos, a investigação internacional dedicada a leveduras oleaginosas tem estado muitíssimo ativa, tendo conduzido a avanços significativos. Em Portugal, existe também elevada competência neste domínio, com projetos de Investigação e Desenvolvimento (I&D) financiados, entre os quais projetos mobilizadores, como foi o caso do Move2LowC (1). No entanto, a produção de biocombustível com base em óleos microbianos tem sido limitada pelo elevado custo das matérias-primas que pode representar cerca de 40% das despesas globais. A redução do custo de produção é, pois, essencial. Vários estudos indicam que a recuperação e valorização de resíduos agroindustriais, resíduos agrícolas e florestais e resíduos industriais, como é o caso do glicerol bruto, podem conduzir a uma tecnologia de produção de biocombustível viável e sustentável. É, nomeadamente, o caso de matérias-primas abundantes como os resíduos lenhocelulósicos, apesar das limitações técnicas dos processos de desconstrução da matéria prima com geração, durante esse tratamento, de vários compostos inibidores do metabolismo das leveduras. Por isso, o desenvolvimento de leveduras mais robustas faz parte dos desafios. A exploração de uma estratégia de biorrefinaria multiproduto, onde diversos coprodutos são gerados em conjunto com os lípidos, é recomendada para garantir a viabilidade económica global da produção de biocombustível. O metabolismo de leveduras oleaginosas permite a coprodução, por exemplo, de carotenoides, ácidos orgânicos, proteínas. Após extração dos lípidos, a biomassa microbiana resultante pode ainda ser usada para ração animal ou submetida a processamento adicional para obter aminoácidos ou péptidos. Acresce que, legislação, políticas e regulamentação consistentes, bem como o apoio à expansão de negócios de base biológica, são outros fatores essenciais para impulsionar esta bioindústria.

(1) https://www.move2lowc.com/

Professora Emérita do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa

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Óleos microbianos: uma alternativa para acelerar a transição energética e a valorização de resíduos?

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Isabel Sá-Correia 09/01/2024 09:32

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No rescaldo da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP28) emerge uma ideia clara: não é mais possível ignorar a grave crise global, bem expressa na crise climática, e há que abandonar uma economia assente nos combustíveis fósseis. O mundo encontra-se hoje extremamente dependente do petróleo, carvão, e gás, para a mobilidade (aeronaves, navios da marinha mercante e passageiros, camiões e automóveis), atividade industrial e climatização, responsáveis pela grande maioria das emissões globais de gases com efeito de estufa, sendo os transportes as maiores fontes. A produção de diesel, ou gasóleo, com base na utilização de óleos vegetais alimentares virgens (palma, soja, colza e outros) foi considerada uma alterativa verde ao diesel derivado da refinação do petróleo. Contudo, o uso desse biodiesel de 1.ª geração é contraproducente pois a necessária expansão das plantações conduziu a alterações no uso do solo e desflorestação de florestas tropicais com um impacto devastador na biodiversidade, para além do aumento de emissões líquidas de gases com efeito de estufa. Sendo este biodiesel pior para o clima e o ambiente do que o diesel fóssil, é irracional qualquer apoio político à sua produção, como aconteceu. Na mais recente política adotada pela União Europeia, os biocombustíveis com base em culturas alimentares ficam limitados e deverão ser gradualmente eliminados das metas renováveis, o mais tardar até 2030. O foco é no desenvolvimento de biocombustíveis a partir de resíduos com utilização de óleos usados e gordura animal. Sendo a eletrificação um processo lento e outras alternativas, como a do hidrogénio, estarem ainda na sua infância, o aumento da incorporação de biocombustíveis é um complemento fundamental para acelerar a transição energética. Podem utilizar as infraestruturas existentes, reduzir a dependência energética, valorizar resíduos e potenciar a indústria nacional.

A Biotecnologia permite o desenvolvimento de processos biológicos adequados à exploração alternativa e sustentável de novas vias para a produção de compostos que hoje se encontram disponíveis como produtos da indústria petroquímica. Neste artigo, tratarei apenas do seu potencial para a produção de biodiesel e combustível sustentável para aviação e barcos. Diversos microrganismos tais como leveduras, microalgas, fungos filamentosos e bactérias, podem acumular,........

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