Uma universidade como deve ser

Uma universidade como deve ser

Luís Oliveira e Silva 19/12/2023 08:42

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A expectativa relativa ao relatório da Comissão Independente de Avaliação do Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior era elevada. Mas o documento é desapontante.

O ensaio “A Universidade como deve ser” [1] de António Feijó e Miguel Tamen, inspiração directa para o título desta crónica, é uma referência fundamental para quem deseja compreender a universidade em Portugal. Os autores analisam o progresso e sucessos da universidade em Portugal, mas também as suas limitações e o enorme potencial de aperfeiçoamento e desenvolvimento. Outros ensaios recentes confirmam o diagnóstico e na comunidade universitária há muito se anseia por iniciativas que fortaleçam a autonomia das universidades e lhes permitam cumprir, de forma mais plena, a sua missão. Assim quando dezembro de 2023 foi anunciado como o mês em que seria apresentado o relatório da Comissão Independente de Avaliação do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES) [2] a expectativa foi elevada, entretanto amplificada pela qualidade do recente trabalho de outra Comissão Independente (do Aeroporto de Lisboa). Este regime jurídico determina (e limita e condiciona) como é que as universidades funcionam e se organizam em Portugal.

A Comissão do RJIES cumpriu o calendário previsto e apresentou o seu relatório na semana passada. Naturalmente, a turbulência política em que vivemos retirou qualquer relevância mediática a esta apresentação. O relatório [3], na sua versão atual, também é desapontante e fica muito aquém das expectativas: “… apresenta os resultados da consulta pública, não sendo, portanto, um documento que corresponda, necessariamente, aos pontos de vista da Comissão sobre as alterações a introduzir no RJIES.”. Cumprida a consulta alargada, em que foram gerados muitos documentos de reflexão e de diagnóstico, fica por analisar o que pode ser melhorado ou alterado. Os cenários e passos seguintes ficam por estudar e definir, a autonomia das universidades por esclarecer (e reforçar), a sensação de que o futuro das universidades em Portugal está (mais uma vez) suspenso.

Todos conseguimos construir uma visão da universidade ideal, combinação da experiência individual de ensino superior de cada um de nós, de visitas, experiências ou estadias noutras universidades, ou das suas representações cinematográficas (em geral anglo-saxónicas) e da sua vivência.

Os aspetos distintivos da universidade, que a tornam uma instituição única, ultrapassam a transferência formal de conhecimento de professores para estudantes. Tais aspetos alicerçam-se na pertença a uma comunidade de académicos e cientistas e na assimilação dos valores, práticas e experiências dessa comunidade, transmitidos formalmente ou, de forma muito acentuada, nas interações sociais nas salas de aula, nos laboratórios, no estudo e na preparação dos trabalhos, nas discussões informais entre pares e com os professores, ou nas palestras. Esta dimensão e riqueza intelectual, muitas vezes invisível do exterior, é o traço comum a todas as visões da universidade: espaço de liberdade, descoberta e de discussão, partilha dessa experiência e dos valores da universidade entre estudantes e na construção de conhecimento entre professores e estudantes.

Ilustro esta riqueza intelectual com exemplos das duas últimas semanas, com as mais recentes “IST Distinguished Lectures” de Ricardo Galvão e Gerrit Kroesen. Em anfiteatros repletos de estudantes, professores e investigadores, assistimos a debates profundos, empolgados e empolgantes. Estes dois professores têm em comum a sua área de base, a física dos plasmas, mas trouxeram reflexões muito para lá da sua área de conhecimento, e que só encontramos na Universidade. Ricardo Galvão, presidente da agência federal brasileira de financiamento da ciência, falou-nos da importância da Amazónia nas alterações climáticas e da política ambiental brasileira com todos os seus desafios políticos, sociais e económicos. Gerrit Kroesen, antigo “Dean” na Universidade Técnica de Eindhoven, falou na importância estratégica do “European Chips Act” e dos desafios tecnológicos e geopolíticos da produção de semicondutores na Europa; mas também discutiu os resultados inspiradores e absolutamente exemplares da sua universidade na promoção da diversidade de género e dos passos decisivos que possibilitaram este o salto qualitativo.

A vivência intelectual sentida diariamente, em múltiplas palestras, conferências e apresentações, em debates baseados na ciência e no conhecimento e com elevação intelectual, e as interações antes e depois destes eventos, envolvendo estudantes, professores e investigadores, inspira toda a comunidade. Demonstra que, apesar de todos os desencontros políticos sobre o seu futuro, a universidade em Portugal renova-se, inspira diariamente estudantes e professores, é cada vez mais uma universidade como deve ser, ou, citando Galileu, “E pur si muove!”.

[1] A. M. Feijó, M. Tamen, A Universidade Como Deve Ser, Fundação Francisco Manuel dos Santos, Setembro 2017

[2] https://comissaorjies.dges.gov.pt/home

[3] https://wwwcdn.dges.gov.pt/sites/default/files/relatorio_final_rjies_2023_v2_provisoria.pdf (acesso em Dezembro de 2017)

O ensaio “A Universidade como deve ser” [1] de António Feijó e Miguel Tamen, inspiração directa para o título desta crónica, é uma referência fundamental para quem deseja compreender a universidade em Portugal. Os autores analisam o progresso e sucessos da universidade em Portugal, mas também as suas limitações e o enorme potencial de aperfeiçoamento e desenvolvimento. Outros ensaios recentes confirmam o diagnóstico e na comunidade universitária há muito se anseia por iniciativas que fortaleçam a autonomia das universidades e lhes permitam cumprir, de forma mais plena, a sua missão. Assim quando dezembro de 2023 foi anunciado como o mês em que seria apresentado o relatório da Comissão Independente de Avaliação do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES) [2] a expectativa foi elevada, entretanto amplificada pela qualidade do recente trabalho de outra Comissão Independente (do Aeroporto de Lisboa). Este regime jurídico determina (e limita e condiciona) como é que as universidades funcionam e se organizam em Portugal.

A Comissão do RJIES cumpriu o calendário previsto e apresentou o seu relatório na semana passada. Naturalmente, a turbulência política em que vivemos retirou qualquer relevância mediática a esta apresentação. O relatório [3], na sua versão atual, também é desapontante e fica muito aquém das expectativas: “… apresenta os resultados da consulta pública, não sendo, portanto, um documento que corresponda, necessariamente, aos pontos de vista da Comissão sobre as alterações a introduzir no RJIES.”. Cumprida a consulta alargada, em que foram gerados muitos documentos de reflexão e de diagnóstico, fica por analisar o que pode ser melhorado ou alterado. Os cenários e passos seguintes ficam por estudar e definir, a autonomia das universidades por esclarecer (e reforçar), a sensação de que o futuro das universidades em Portugal está (mais uma vez) suspenso.

Todos conseguimos construir uma visão da universidade ideal, combinação da experiência individual de ensino superior de cada um de nós, de visitas, experiências ou estadias noutras universidades, ou das suas representações cinematográficas (em geral anglo-saxónicas) e da sua vivência.

Os aspetos distintivos da universidade, que a tornam uma instituição única, ultrapassam a transferência formal de conhecimento de professores para estudantes. Tais aspetos alicerçam-se na pertença a uma comunidade de académicos e cientistas e na assimilação dos valores, práticas e experiências dessa comunidade, transmitidos formalmente ou, de forma muito acentuada, nas interações sociais nas salas de aula, nos laboratórios, no estudo e na preparação dos trabalhos, nas discussões informais entre pares e com os professores, ou nas palestras. Esta dimensão e riqueza intelectual, muitas vezes invisível do exterior, é o traço comum a todas as visões da universidade: espaço de liberdade, descoberta e de discussão, partilha dessa experiência e dos valores da universidade entre estudantes e na construção de conhecimento entre professores e estudantes.

Ilustro esta riqueza intelectual com exemplos das duas últimas semanas, com as mais recentes “IST Distinguished Lectures” de Ricardo Galvão e Gerrit Kroesen. Em anfiteatros repletos de estudantes, professores e investigadores, assistimos a debates profundos, empolgados e empolgantes. Estes dois professores têm em comum a sua área de base, a física dos plasmas, mas trouxeram reflexões muito para lá da sua área de conhecimento, e que só encontramos na Universidade. Ricardo Galvão, presidente da agência federal brasileira de financiamento da ciência, falou-nos da importância da Amazónia nas alterações climáticas e da política ambiental brasileira com todos os seus desafios políticos, sociais e económicos. Gerrit Kroesen, antigo “Dean” na Universidade Técnica de Eindhoven, falou na importância estratégica do “European Chips Act” e dos desafios tecnológicos e geopolíticos da produção de semicondutores na Europa; mas também discutiu os resultados inspiradores e absolutamente exemplares da sua universidade na promoção da diversidade de género e dos passos decisivos que possibilitaram este o salto qualitativo.

A vivência intelectual sentida diariamente, em múltiplas palestras, conferências e apresentações, em debates baseados na ciência e no conhecimento e com elevação intelectual, e as interações antes e depois destes eventos, envolvendo estudantes, professores e investigadores, inspira toda a comunidade. Demonstra que, apesar de todos os desencontros políticos sobre o seu futuro, a universidade em Portugal renova-se, inspira diariamente estudantes e professores, é cada vez mais uma universidade como deve ser, ou, citando Galileu, “E pur si muove!”.

[1] A. M. Feijó, M. Tamen, A Universidade Como Deve Ser, Fundação Francisco Manuel dos Santos, Setembro 2017

[2] https://comissaorjies.dges.gov.pt/home

[3] https://wwwcdn.dges.gov.pt/sites/default/files/relatorio_final_rjies_2023_v2_provisoria.pdf (acesso em Dezembro de 2017)

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Luís Oliveira e Silva 19/12/2023 08:42

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O ensaio “A Universidade como deve ser” [1] de António Feijó e Miguel Tamen, inspiração directa para o título desta crónica, é uma referência fundamental para quem deseja compreender a universidade em Portugal. Os autores analisam o progresso e sucessos da universidade em Portugal, mas também as suas limitações e o enorme potencial de aperfeiçoamento e desenvolvimento. Outros ensaios recentes confirmam o diagnóstico e na comunidade universitária há muito se anseia por iniciativas que fortaleçam a autonomia das universidades e lhes permitam cumprir, de forma mais plena, a sua missão. Assim quando dezembro de 2023 foi anunciado como o mês em que seria apresentado o relatório da Comissão Independente de Avaliação do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES) [2] a expectativa foi elevada, entretanto amplificada pela qualidade do recente trabalho de outra Comissão Independente (do Aeroporto de Lisboa). Este regime jurídico determina (e limita e condiciona) como é que as universidades funcionam e se organizam em Portugal.

A Comissão do RJIES cumpriu o calendário previsto e apresentou o seu relatório na semana passada. Naturalmente, a turbulência política em que vivemos retirou qualquer relevância mediática a esta apresentação. O relatório [3], na sua versão atual, também é desapontante e fica muito aquém das expectativas: “… apresenta os resultados da consulta pública, não sendo, portanto, um documento que corresponda, necessariamente, aos pontos de vista da Comissão sobre as alterações a introduzir no RJIES.”. Cumprida a consulta alargada, em que foram gerados muitos documentos de reflexão e de diagnóstico, fica por analisar o que pode ser melhorado ou alterado. Os cenários e passos seguintes ficam por estudar e definir, a autonomia das universidades por esclarecer (e reforçar), a sensação de que o futuro das universidades em Portugal está (mais uma vez) suspenso.

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