Com o texto O nazi Navalny, Joana Amaral Dias quis destruir Navalny e absolver Putin. Quis dizer: Navalny era um patife e não fazia cá falta nenhuma, e, ao contrário do que todos dizem, se calhar nem foi Putin que ordenou a sua morte. Ora, dizer isto nesta altura não é ser politicamente incorreto – é estar do lado errado da História.

Joana Amaral Dias tem uma grande virtude: recusa o politicamente correto, que se tornou nos dias que correm a grande ameaça à liberdade. A censura voltou a existir nas redes sociais. ‘Cancelam-se’ pessoas, ou seja, fazem-se processos sumários por delito de opinião e os condenados são banidos do convívio social. Joana Amaral Dias luta contra esta ameaça. Não se conforma. Basta isso para merecer respeito. Mas tal não significa que tenha sempre razão. Às vezes, a vontade de dizer coisas diferentes conduz a posições insustentáveis. O gosto de não repetir o que ‘toda a gente diz’ leva-nos a cair no erro.

Vem isto a propósito de um artigo que publicou neste jornal sobre Navalny, com o título provocatório de O nazi Navalny. Aí se lia:

«O branqueamento e a idealização que têm sido conduzidos sobre Navalny seriam patéticos se não fossem tão perigosos. Um herói?! Alexei debutou na política como organizador de marchas neonazis na Rússia e, de resto, manteve até ao final da sua vida que os imigrantes são baratas que devem ser eliminadas a tiro. Foi expulso do primeiro partido onde militou por ideias ultra nacionalistas e espalhou ódio que desembocou em assassinatos xenófobos. Também não se trata de um modelo de combate à corrupção. Em 2013, foi condenado a cinco anos de pena suspensa por peculato e desvio de fundos. Em 2014, foi dado como culpado, juntamente com o irmão, de outro peculato. Pelo meio lançou a Fundação Anticorrupção largamente financiada pelos EUA e pelo RU.»

Não vou discutir estas imputações. Muitas delas fazem parte do arsenal de acusações que o Kremlin fazia a Navalny. E o facto de este ser financiado pelos EUA e pela Inglaterra não condiz com o rótulo de ‘nazi’: que se saiba, esses países não financiam organizações nazis. Enfim, a bota não joga com a perdigota. Mas vamos ao cerne do caso.

Para início de conversa, Joana Amaral Dias disse mais ou menos isto: «Com a morte de Navalny não se perdeu nada, porque ele era um patife».

Ora, mesmo que tal fosse verdade, não se diz: até os criminosos merecem algum respeito. Por isso foi abolida a pena de morte. Mas nem sequer é verdade. Objetivamente, com a morte de Navalny, o mundo livre sofreu uma perda terrível: porque desapareceu alguém que lutava contra um déspota criminoso. E fazia-o com uma coragem ímpar: quantos ousariam voltar à Rússia depois de terem sido envenenados, sabendo que iam ser presos? Quantos se atreveriam a opor-se a Putin e ao regime russo de peito aberto? Quantos se disporiam a desafiar praticamente sozinho um Estado totalitário que não poupa os opositores?

Só isso merece uma imensa admiração.

Mas Joana Amaral Dias não se limitou a desfazer Navalny: lançou dúvidas de que tenha sido Putin a ordenar a sua liquidação, visto o momento não lhe ser conveniente. Ora, já se percebeu há muito que Putin não olha a momentos nem a conveniências. A morte de Yevgeny Prigozhin, quando e como aconteceu, também não lhe interessava nada. Mas Putin nunca se preocupou com as aparências. Só lhe interessa que fique clara uma coisa: quem se lhe opõe já sabe que, mais tarde ou mais cedo, será eliminado.

Apesar de não desconhecer isto, Joana Amaral Dias admite que Navalny pode ter morrido por doença súbita. Claro que pode, mas não é provável. Depois de tantas mortes misteriosas (por atropelamento, por envenenamento, por queda de andares altos, etc.), que só tiveram em comum o facto de todas as vítimas serem opositores de Putin, é difícil acreditar que a morte de Navalny tenha sido acidental. Seria uma excepção, num rol de assassínios políticos que já vai longo.

No fundo, com aquele texto, Joana Amaral Dias quis destruir Navalny e absolver Putin. Quis dizer: Navalny era um patife e não fazia cá falta nenhuma, e, ao contrário do que todos dizem, se calhar nem foi Putin que ordenou a sua morte.

Ora, numa altura como esta, com um país arrasado sem razão nenhuma, com uma ameaça nuclear a pairar sobre o Ocidente, perante um homem que implantou um regime de terror no país mais extenso do mundo e se eternizou no poder, vir absolvê-lo e condenar um destacado preso político que morreu na prisão não é ser politicamente incorreto – é estar do lado errado da História.

O Ocidente tem muitas coisas más. A ideologia de género, os ‘cancelamentos’, o espírito de manada, tudo isso é odioso. Mas entre viver hoje no Ocidente ou na Rússia de Putin, o que escolheria Joana Amaral Dias?

Nem sempre estar contra o que ‘todos dizem’ é sinónimo de ter razão.

QOSHE - A coragem de Navalny - José António Saraiva
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A coragem de Navalny

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27.03.2024

Com o texto O nazi Navalny, Joana Amaral Dias quis destruir Navalny e absolver Putin. Quis dizer: Navalny era um patife e não fazia cá falta nenhuma, e, ao contrário do que todos dizem, se calhar nem foi Putin que ordenou a sua morte. Ora, dizer isto nesta altura não é ser politicamente incorreto – é estar do lado errado da História.

Joana Amaral Dias tem uma grande virtude: recusa o politicamente correto, que se tornou nos dias que correm a grande ameaça à liberdade. A censura voltou a existir nas redes sociais. ‘Cancelam-se’ pessoas, ou seja, fazem-se processos sumários por delito de opinião e os condenados são banidos do convívio social. Joana Amaral Dias luta contra esta ameaça. Não se conforma. Basta isso para merecer respeito. Mas tal não significa que tenha sempre razão. Às vezes, a vontade de dizer coisas diferentes conduz a posições insustentáveis. O gosto de não repetir o que ‘toda a gente diz’ leva-nos a cair no erro.

Vem isto a propósito de um artigo que publicou neste jornal sobre Navalny, com o título provocatório de O nazi Navalny. Aí se lia:

«O branqueamento e a idealização que têm sido conduzidos sobre Navalny seriam patéticos se não fossem tão........

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