Há muitos anos, no Expresso, encarreguei um jornalista de fazer um trabalho sobre o aumento do tamanho dos automóveis. À vista desarmada, parecia-me que os carros estavam a crescer. Nos anos 60, havia os Austin Mini, os Fiat 500 e 600, o Volkswagen carocha, um pouco maior, depois surgiria o Renault 5, também de modestas dimensões. Para já não falar no Isetta de três rodas. Ora, tudo isso desaparecera e os novos modelos tinham outras dimensões.

Porém, uns dias depois, o jornalista a quem tinha encomendado o trabalho – supostamente especialista em carros – veio dizer-me que a minha ideia não era correta, pelo que o artigo não tinha viabilidade. Aceitei, embora pouco convencido. Considerei aquela desistência como um sinal de preguiça, mas não tinha elementos sólidos para o contrariar.

O futuro dar-me-ia razão. Os carros estavam mesmo a aumentar de tamanho. E a prova surgiria já nos anos 2000, quando o revivalismo fez regressar velhos modelos carismáticos… mas num formato muitíssimo maior. Como se estivessem a outra escala. Assim, reapareceram o carocha, o Mini, os Fiat 500 e 600, quase iguais na forma mas muito diferentes no tamanho.
Cabe, entretanto, uma pergunta: qual a razão para as dimensões dos carros terem vindo a aumentar, quando tudo apontava no sentido oposto?
De facto, muitas mulheres começaram a conduzir, e muitas famílias passaram a ter dois carros – andando o marido e a mulher cada um no seu –, pelo que podiam ser mais pequenos.

Por outro lado, as famílias passaram a ter menos filhos; há 50 anos ainda eram vulgares as famílias com 3 e 4 filhos, mas este número reduzira-se drasticamente para um ou dois.

E depois as questões ambientais. Perante a agudização destas, era natural que o caminho fosse no sentido da economia. Ora, os carros maiores consomem mais material na construção e mais combustível no dia-a-dia.
O aumento das dimensões dos automóveis desafia, pois, a lógica, a todos os níveis. A maioria dos carros com que hoje nos cruzamos nas ruas transporta apenas uma pessoa. E quando vemos um homem ou uma mulher magros e baixinhos a sair de um carrão enorme, percebemos o absurdo da situação.
Li que o crescimento dos carros se deveu a razões económicas. Os carros pequenos davam pouco lucro. O seu preço tinha de ser barato e não compensava. O lucro na venda de um carro grande é muitíssimo superior.
Creio, porém, que os gostos das pessoas também tiveram aqui um papel determinante. Para muita gente, mesmo sem o consciencializar, o carro é um objeto de afirmação. Dentro de um carro grande, uma pessoa sente-se mais respeitável. Um homem pequenino, num carro grande, projeta uma imagem de força.

Nesta escalada dimensional, surgiram os famigerados SUV, que representaram um enorme salto, e, mais recentemente, apareceram uns novos modelos ainda maiores, meio carro, meio jipe, com a frente direita, cortada na vertical.

O aerodinamismo sempre levou a que as frentes dos carros fossem baixas, para oporem menor resistência ao ar. Exemplos sugestivos são o carismático Porsche ou o menos vulgar Jaguar E, com a dianteira em bico de pato (não confundir com o Citroën boca de sapo).

As atuais frentes verticais não têm, pois, qualquer lógica: devem aumentar o consumo e são mais perigosas para terceiros: num acidente, funcionam quase como uma camioneta.

Durante algum tempo, interroguei-me sobre aquilo que terá conduzido a este novo modelo, que já circula abundantemente por aí. Até que, ao ver imagens da guerra na Ucrânia, percebi donde veio a inspiração: dos carros de transporte de tropas.
Tal como os novos SUV, aqueles carros têm a frente muito alta e a grelha vertical.

Eles reforçam o sentimento de poder. Quem vai lá dentro sente-se mais dominador (e eventualmente mais seguro). Como instrumento de afirmação, representa um passo em frente. Daí o seu sucesso, contra a aparente falta de lógica do desenho.
Veremos o que o futuro nesta matéria nos reserva.
Julgo que, com as restrições ambientais, não podem continuar a construir-se maciçamente carros enormes, pesados, autênticos mastodontes, que em 80% dos casos transportam apenas uma pessoa. É um atentado ao bom senso.

QOSHE - Carros de combate - José António Saraiva
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Carros de combate

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24.11.2023

Há muitos anos, no Expresso, encarreguei um jornalista de fazer um trabalho sobre o aumento do tamanho dos automóveis. À vista desarmada, parecia-me que os carros estavam a crescer. Nos anos 60, havia os Austin Mini, os Fiat 500 e 600, o Volkswagen carocha, um pouco maior, depois surgiria o Renault 5, também de modestas dimensões. Para já não falar no Isetta de três rodas. Ora, tudo isso desaparecera e os novos modelos tinham outras dimensões.

Porém, uns dias depois, o jornalista a quem tinha encomendado o trabalho – supostamente especialista em carros – veio dizer-me que a minha ideia não era correta, pelo que o artigo não tinha viabilidade. Aceitei, embora pouco convencido. Considerei aquela desistência como um sinal de preguiça, mas não tinha elementos sólidos para o contrariar.

O futuro dar-me-ia razão. Os carros estavam mesmo a aumentar de tamanho. E a prova surgiria já nos anos 2000, quando o revivalismo fez regressar velhos modelos carismáticos… mas num formato muitíssimo maior. Como se estivessem a outra escala.........

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