Na última edição deste jornal, Rui Moreira publicou um texto muito direto onde defende o financiamento dos media por parte do Estado. «Trata-se, no fundo, de garantir um serviço público», afirmou, acrescentando: «Considerando a sua importância para a democracia e a defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, a comunicação social merece apoios tal qual a saúde, a educação ou a cultura».

O artigo surge no contexto dos problemas que têm afligido a Global Média, que entre outros meios detém o Jornal de Notícias – diário com uma fortíssima tradição na cidade do Porto e em todo o Norte, onde marcou sucessivas gerações. Compreendo, assim, a especial preocupação de Rui Moreira.

Tive com ele uma pequena polémica há uns anos no jornal Record, a propósito de um caso envolvendo o FC Porto, do qual é adepto fervoroso. Mas isso não me impede de ter estima e consideração por ele, acrescida pelo facto de convivermos nas páginas deste semanário de que fui fundador.
Discordo, porém, por completo daquilo que escreveu. O que não deixa de ser curioso: ele, um político, a defender a obrigação de os poderes públicos apoiarem a comunicação social, eu, um jornalista, a defender a posição contrária.

Faço-o, por duas ordens de razões.
Por um lado, acho há muito tempo que o grande problema português é a falta de autonomia da sociedade civil. Há demasiada gente a depender do Estado, desde apoios a subsídios, e essa é uma das principais razões do nosso atraso. Enquanto a sociedade civil não se emancipar, o país não cresce.
Ora, subsidiar os media significaria, na prática, pôr na dependência do Estado um dos instrumentos mais importantes de afirmação da sociedade civil: a informação e a opinião.

Por outro lado, a dependência económica arrasta necessariamente dependência editorial.
Rui Moreira argumenta que durante a pandemia o Estado apoiou financeiramente algumas empresas de comunicação social e os seus jornalistas nunca deixaram de ser incómodos para o poder político.
É verdade. Só que se tratou de uma situação de exceção, transitória: não era uma dependência estrutural, prolongada. «Não mordas a mão de quem te dá de comer», é um provérbio português. Se os jornalistas souberem que o seu ordenado depende de apoios governamentais, a pouco e pouco a tendência será para não criticarem o Governo. Não se trata de menos zelo profissional; mas quando a sobrevivência está em causa, esta prevalece sobre outras considerações.

E falo de ‘Governo’ e não de ‘Estado’, pois nesta como noutras questões falar em ‘Estado’ é um eufemismo. O Estado não existe em abstrato. Quem gere o Estado é o Governo. E toda a gente sabe como funciona a gestão pública. Para lá do condicionamento da opinião, o financiamento público dos media torná-los-ia locais privilegiados para a colocação de boys e girls do partido no poder.

Um dia, num programa da RTP, falei na sua invejável independência em relação ao Governo, que na altura me parecia real. Pois, no fim, fui abordado pelo então subdiretor de informação, Gualdino Paredes, que me disse: «O José António falou na nossa independência. Não sabe o que se passa cá dentro. Há muitas pressões». E quem não se lembra dos telefonemas de Mário Soares para os diretores de jornais, a insultá-los pela publicação de uma notícia? E das cenas de José Sócrates?

Enquanto fui diretor do Expresso, alguns jornalistas protestavam contra o facto de o jornal dar muito lucro e eles não ganharem na proporção. «O Balsemão está a encher os bolsos à nossa custa!», clamavam. E eu respondia: «Enquanto isso acontecer é bom sinal. Enquanto o jornal der lucro, temos toda a liberdade. O problema é se começar a dar prejuízo…».
Mas o próprio Balsemão era nessa altura absolutamente contrário aos financiamentos do Estado aos jornais. Tivemos várias conversas a esse respeito. Poderia haver certas facilidades, designadamente em termos fiscais, mas financiamento não.

No mundo inteiro os jornais perderam leitores e não se vê hoje um jovem a ler o jornal. Se calhar, teremos um dia de reconhecer que os jornais em papel são objetos do passado. E, nessa altura, não valerá a pena mantê-los vivos artificialmente.

Mas, enquanto se achar que têm alguma importância, devem procurar-se na sociedade civil meios de os sustentar. Não paliativos, mas substanciais, justos e tendo a ver com a época em que vivemos.

A RTP encontrou um modelo de financiamento através de uma taxa cobrada na fatura da eletricidade. Ora, em relação aos jornais, poderia encontrar-se um mecanismo semelhante: o financiamento através de uma taxa aplicada às grandes empresas de distribuição de conteúdos na internet – que, em larga escala, usam conteúdos produzidos pela imprensa.

Não sei como isso se processaria em concreto, e a ideia nem é minha: foi-me sugerida pelo leitor Rui Rodrigues. Mas parece-me fazer sentido – e não colocaria a sociedade civil ainda em maior dependência do Estado, ou seja, do partido ou coligação no poder.
Aqui fica, para quem a quiser aproveitar.

QOSHE - Deve o Estado financiar os media? - José António Saraiva
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Deve o Estado financiar os media?

5 14
09.02.2024

Na última edição deste jornal, Rui Moreira publicou um texto muito direto onde defende o financiamento dos media por parte do Estado. «Trata-se, no fundo, de garantir um serviço público», afirmou, acrescentando: «Considerando a sua importância para a democracia e a defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, a comunicação social merece apoios tal qual a saúde, a educação ou a cultura».

O artigo surge no contexto dos problemas que têm afligido a Global Média, que entre outros meios detém o Jornal de Notícias – diário com uma fortíssima tradição na cidade do Porto e em todo o Norte, onde marcou sucessivas gerações. Compreendo, assim, a especial preocupação de Rui Moreira.

Tive com ele uma pequena polémica há uns anos no jornal Record, a propósito de um caso envolvendo o FC Porto, do qual é adepto fervoroso. Mas isso não me impede de ter estima e consideração por ele, acrescida pelo facto de convivermos nas páginas deste semanário de que fui fundador.
Discordo, porém, por completo daquilo que escreveu. O que não deixa de ser curioso: ele, um político, a defender a obrigação de os poderes públicos apoiarem a comunicação social, eu, um jornalista, a defender a posição contrária.

Faço-o, por duas ordens de........

© Jornal SOL


Get it on Google Play