A forte possibilidade de Donald Trump regressar à presidência dos Estados Unidos fez tocar todas as campainhas na esquerda e nos círculos políticos moderados dos EUA e da Europa. Biden dramatizou o discurso e diabolizou o rival, dizendo com todas as letras que o seu comportamento recorda o dos nazis. E adiantou que, se Trump chegar à Casa Branca, a democracia ficará em perigo.

O Presidente americano parecia estar a falar de um ilustre desconhecido, que uma vez no poder fará coisas terríveis e inesperadas.

Ora, trata-se de um homem que já foi Presidente da América e, que se saiba, não só não acabou com a democracia como, no essencial, a preservou. Alega-se que não aceitou a derrota eleitoral e foi o mentor do assalto ao Capitólio. Não sei se foi o mentor ou não. Mas temos de convir que a derrota de Trump – e a consequente eleição de Biden – suscitou as maiores desconfianças.

No dia das eleições americanas, quando os portugueses foram para a cama, Donald Trump estava praticamente eleito. Quando se levantaram, a vitória estava tremida. E à hora do almoço consumara-se a derrota. E como? Através dos votos presenciais? Não: através dos votos por correspondência, passíveis de todas as dúvidas. Nalguns Estados, quase todos os votos por correspondência caíram no fim para o lado de Biden.

Sendo o assalto ao Capitólio um ato gravíssimo, inadmissível, altamente condenável, a raiva dos partidários de Trump era compreensível. Sentiram-se espoliados na secretaria de uma vitória obtida em campo.

E agora, que têm a oportunidade de uma vingança, nas secretarias tudo volta a mover-se para a impossibilitar. Os adversários querem impedir Trump de se candidatar, na convicção de que, se ele for a votos, ganhará as eleições.
Biden acusa Trump de querer destruir a democracia, mas quem neste momento está a querer bloquear a expressão livre do voto popular não é Trump – são os seus adversários.

Vem tudo isto a propósito do apoio dos Estados Unidos à Ucrânia.
Os republicanos têm torpedeado a continuidade das ajudas a Kiev, e os analistas adiantam legitimamente que, se Trump for eleito, estas ajudas diminuirão drasticamente. A Ucrânia ficará sem meios de defesa e a Rússia ganhará a guerra.

É possível.
Mas este cenário terrível tem uma virtude: confronta a Europa com as suas fraquezas. Esta guerra passa-se dentro das fronteiras da Europa, pelo que são os europeus os mais interessados no seu desfecho. Não podemos estar sempre à espera dos EUA. Já em 1941 precisámos da vinda dos soldados americanos para nos livrarem dos nazis. E a história repete-se – não com o envio de tropas mas de dinheiro e material.

A Rússia é desde há muito uma ameaça à democracia e ao modo de vida europeu. Os intentos imperialistas de Moscovo não são de agora. Já Salazar lamentava a «humilhação» dos alemães no fim da 2.ª guerra mundial, não por simpatia por Hitler, como a esquerda afirmou, mas por receio da Rússia. Salazar designava a Alemanha como «o escudo eslavo» – e considerava que, espezinhado este em 1945, os russos ficavam com o caminho aberto para conquistarem o continente europeu.

Hoje, a questão volta a colocar-se.
A Rússia não muda. Pode mudar o líder, pode mudar a forma de regime, pode até mudar o sistema, mas os objetivos estratégicos não se alteram. Putin já disse que está em guerra, não com a Ucrânia, mas com o Ocidente.

Ora, se numa guerra global entre o Ocidente e o resto do mundo a Europa não pode deixar de contar com o apoio dos EUA (como a Rússia não pode deixar de contar com o apoio da China), numa guerra regional como esta a Europa tem de ter meios de defesa. Não pode estar dependente de uma eleições nos EUA. Há males que vêm por bem. A expectativa de uma vitória de Trump pode ser o aviso que leve a Europa a abrir os olhos e a perceber que tem de ter meios de defesa próprios.

O apoio à Ucrânia cabe em primeira linha aos europeus, pela simples razão de que a ameaça russa se dirige em primeiro lugar à Europa. Não são os americanos que têm de ter medo de uma invasão russa. Os russos não vão atravessar o Pacífico para irem atacar os EUA pelas costas. São os europeus que têm de construir um escudo às ambições imperialistas de Moscovo.
O tal «escudo eslavo» de que falava Salazar. Um escudo de defesa da democracia, de defesa do nosso modo de vida, da nossa sociedade – que, com todos os seus defeitos, é ainda aquela onde se vive melhor, e que todos procuram.

De facto, não é para a Rússia que os migrantes se dirigem quando deixam os seus países. Não é para a China. Não é para a Coreia do Norte, nem para a América do Sul, muito menos para África. É para a Europa e para os EUA que as pessoas querem ir. Para o Ocidente. Por alguma razão.

QOSHE - O escudo eslavo - José António Saraiva
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

O escudo eslavo

9 0
19.01.2024

A forte possibilidade de Donald Trump regressar à presidência dos Estados Unidos fez tocar todas as campainhas na esquerda e nos círculos políticos moderados dos EUA e da Europa. Biden dramatizou o discurso e diabolizou o rival, dizendo com todas as letras que o seu comportamento recorda o dos nazis. E adiantou que, se Trump chegar à Casa Branca, a democracia ficará em perigo.

O Presidente americano parecia estar a falar de um ilustre desconhecido, que uma vez no poder fará coisas terríveis e inesperadas.

Ora, trata-se de um homem que já foi Presidente da América e, que se saiba, não só não acabou com a democracia como, no essencial, a preservou. Alega-se que não aceitou a derrota eleitoral e foi o mentor do assalto ao Capitólio. Não sei se foi o mentor ou não. Mas temos de convir que a derrota de Trump – e a consequente eleição de Biden – suscitou as maiores desconfianças.

No dia das eleições americanas, quando os portugueses foram para a cama, Donald Trump estava praticamente eleito. Quando se levantaram, a vitória estava tremida. E à hora do almoço consumara-se a derrota. E como? Através dos votos presenciais? Não: através dos votos por correspondência,........

© Jornal SOL


Get it on Google Play