Em Paris, onde viveu durante toda a década de sessenta, o meu pai ia almoçar regularmente a uma cantina universitária que existia na Place de l’Odéon, perto do Boulevard Saint-Michel. A qualidade era péssima, mas o preço mínimo: comia-se por poucos francos. Era frequentada por estudantes (na maioria negros) oriundos das ex-colónias francesas, e por imigrantes de outras nacionalidades. Iam lá comer muitos portugueses fugidos à guerra colonial, como José Mário Branco ou Luís Cília.

Almocei lá muitas vezes com o meu pai. Um belo dia, ele deteve-se a falar com um português, explicando-me depois quem era. O meu pai chamava-lhe o ‘homem das moléculas de ar’, porque há tempos lhe apresentara uma teoria que tentava explicar por que razão os povos do Norte eram mais desenvolvidos do que os do Sul. Em síntese, no Norte as temperaturas são mais baixas, o ar é mais denso, menos rarefeito, pelo que, quando as pessoas inspiram, inalam mais moléculas de ar. Assim, o organismo, a começar pelo cérebro, é mais oxigenado – sendo as pessoas mais ativas e inteligentes.

Em contrapartida, os povos do Sul, onde o ar é quente, inspiram menos moléculas de ar, pelo que são mais passivos e menos inteligentes.

O meu pai contou-me isto a rir. Dizia que o homem era um imbecil. Como comunista que ainda não deixara de ser, o meu pai considerava os povos iguais em qualidades – pelo que afirmar que a Natureza podia contribuir para tornar uns mais capazes do que outros era para ele uma enorme parvoíce.

Eu não o quis contrariar, até porque nunca tinha pensado no assunto, mas não me pareceu que a teoria fosse totalmente destituída de sentido. Uma coisa era certa: os povos do Norte da Europa ou da América eram mais desenvolvidos do que os do Sul. O Canadá e os EUA estavam notoriamente à frente do Brasil, da Venezuela ou da Colômbia; e a Suécia, a Alemanha ou a Holanda eram mais desenvolvidas do que a Espanha, a Grécia ou Portugal.

Ora, isso tinha de ter uma explicação.

E mesmo dentro de cada país tal se verificava. O Norte de Portugal era mais desenvolvido do que o Sul, e a situação era igual na Itália ou em Espanha.

Como explicar este fenómeno?

Sem conhecimentos científicos para avaliar a ‘teoria das moléculas de ar’, a realidade parecia dar razão ao homem.

Por extraordinária coincidência, uns bons anos depois ele aparecerá como aluno na Escola de Belas-Artes de Lisboa, e irá parar à minha turma. E aí confirmei que não era um imbecil. Não seria um génio, mas era um aluno perfeitamente normal. Nunca falámos das moléculas de ar…

Dou um salto no tempo, e passo para os nossos dias. Por uma infelicíssima circunstância – a morte de um primo direito, filho de uma irmã do meu pai –, fui na semana passada a um funeral no cemitério de Donas.

Donas é uma aldeia da Beira Baixa, próxima do Fundão, donde são oriundos os meus avós paternos, que lá viveram numa casa que ainda está de pé: chamavam-lhe o ‘passal’, pois era a antiga residência do pároco. Passei lá férias em miúdo, quando os meus avós já viviam em Lisboa (onde o meu avô foi reitor do Liceu Passos Manuel) mas se mudavam para lá no Verão.

A igreja de Donas – pequena, bonita, impecavelmente restaurada – fica no meio do povoado. Ali se realizou a missa de corpo presente do meu falecido primo. E o cortejo fúnebre foi depois em procissão até ao cemitério, que se situa bastante mais abaixo, no fundo do vale. «A descer é fácil, mas para cima é que vão ser elas!» – comentei para a minha mulher, enquanto descíamos a calçada razoavelmente íngreme.

No regresso, começámos a subir a ladeira devagar. Mas dei por mim a alargar a passada, a aumentar a velocidade, sem esforço aparente. Cheguei ao topo fresco. Podia ser uma coincidência. Por isso, quando a minha mulher me alcançou, perguntei-lhe: «Então, custou-te muito?». E ela, com a maior das calmas, respondeu-me: «Não me custou nada!».

Os termómetros marcavam 2º centígrados. E subitamente veio-me à cabeça a teoria das moléculas de ar. Como estava muito frio, as moléculas estariam mais concentradas, inspirávamos maior quantidade de oxigénio e o organismo reagia melhor ao esforço. E pensei em quão injusto fora o meu pai ao ridicularizar o homem.

Se calhar, um cientista que esteja a ler este texto pensará que o imbecil sou eu. Que a teoria é estapafúrdia. E estará possivelmente cheio de razão. Uma coisa, porém, é certa: subi aquela ladeira íngreme com uma perna às costas. Se foi pelas moléculas de ar ou por outra razão qualquer, não sei. Mas alguma coisa terá sido.

QOSHE - O homem das moléculas de ar - José António Saraiva
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O homem das moléculas de ar

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01.02.2024

Em Paris, onde viveu durante toda a década de sessenta, o meu pai ia almoçar regularmente a uma cantina universitária que existia na Place de l’Odéon, perto do Boulevard Saint-Michel. A qualidade era péssima, mas o preço mínimo: comia-se por poucos francos. Era frequentada por estudantes (na maioria negros) oriundos das ex-colónias francesas, e por imigrantes de outras nacionalidades. Iam lá comer muitos portugueses fugidos à guerra colonial, como José Mário Branco ou Luís Cília.

Almocei lá muitas vezes com o meu pai. Um belo dia, ele deteve-se a falar com um português, explicando-me depois quem era. O meu pai chamava-lhe o ‘homem das moléculas de ar’, porque há tempos lhe apresentara uma teoria que tentava explicar por que razão os povos do Norte eram mais desenvolvidos do que os do Sul. Em síntese, no Norte as temperaturas são mais baixas, o ar é mais denso, menos rarefeito, pelo que, quando as pessoas inspiram, inalam mais moléculas de ar. Assim, o organismo, a começar pelo cérebro, é mais oxigenado – sendo as pessoas mais ativas e inteligentes.

Em contrapartida, os povos do Sul, onde o ar é quente, inspiram menos........

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