Quando assumi a direção do Expresso, em 1983, a situação era esta: havia 17 jornalistas no quadro, muitos deles com nome firmado (Maria João Avillez, Vicente Jorge Silva, Joaquim Vieira, José Júdice, etc.), que ganhavam todos o mesmo – julgo que 60 contos. Cinco destes tinham funções de chefia – coordenavam as 4 secções em que o caderno principal se dividia (Nacional, Internacional, Economia e Desporto) e a Revista – pelas quais recebiam um suplemento mensal de 15 contos.

Existiam, depois, pagamentos ‘por baixo da mesa’. Por exemplo, a secção Gente, na altura redigida por Pedro d’Anunciação, era paga à parte. Estes bónus tinham sido instituídos pelo meu antecessor no cargo, Marcelo Rebelo de Sousa (Augusto de Carvalho, que exercia a direção quando entrei, fazia-o interinamente).

Cancelei esses pagamentos – não fazia sentido um jornalista do quadro receber extras – e a situação ficou muito clara: todos os jornalistas recebiam o mesmo ordenado, e os coordenadores tinham um suplemento pelo exercício de funções de chefia, que caía quando essas funções terminavam.

Devo dizer que, quanto a questões salariais, foram os tempos mais tranquilos que vivi na minha longa permanência à frente do jornal.

O primeiro sinal do fim dessa tranquilidade veio numa conversa com o jornalista Joaquim Vieira. Disse-me este, na sua forma muito crua de pôr os problemas: «Não faz sentido que ganhem todos o mesmo, quando a contribuição de cada um para o jornal não é igual». Expliquei-lhe que todos tinham os mesmos deveres e obrigações, sendo difícil estabelecer uma nova tabela salarial com base no ‘talento’ ou na ‘produtividade’ (visto haver trabalhos jornalísticos mais morosos ou mais complexos do que outros).

Entretanto o jornal cresceu, a redação também, entraram jornalistas jovens que não podiam ganhar o mesmo que os que lá estavam, e tudo se desregulou. Uns bons anos mais tarde a situação era muitíssimo confusa. Assim, depois do êxodo de jornalistas para o Público, acompanhando Vicente Jorge Silva, fiz uma nova tabela de vencimentos. A novidade era a criação de duas carreiras paralelas: uma jornalística e outra de chefia. Havia bons jornalistas que, no entanto, não davam bons chefes (ou que eram mais úteis na reportagem ou na investigação). Ora, era injusto serem penalizados por isso. Com a nova tabela, um jornalista podia progredir salarialmente sem precisar de ser ‘chefe’.

Perguntará agora o leitor: mas era o diretor que estabelecia os ordenados?

Não. Obviamente essa responsabilidade pertencia à administração. Mas como vivíamos em tempo de vacas gordas, a administração em geral aceitava as minhas propostas.

Mais ou menos pela mesma altura fui convidado por Cavaco Silva para um pequeno-almoço na residência de S. Bento que, por extraordinária coincidência, incidiu sobre este tema. O Governo estava a elaborar uma nova tabela de vencimentos para a Função Pública, e Cavaco quis dar-me conhecimento do assunto. A situação existente era caótica e havia que a disciplinar. O então primeiro-ministro falou-me em linhas gerais dessa reforma, que parecia lógica, mas que tinha um senão: iria implicar um grande aumento da despesa pública. Percebi logo isso, pois – sendo ilegal a redução de um ordenado – todos os ajustes e equiparações de salários teriam de fazer-se obrigatoriamente para cima. E, com tantos acertos a fazer, o crescimento da despesa seria enorme – como veio a acontecer.

Pela dificuldade e delicadeza de uma reforma deste tipo, os governos seguintes deveriam respeitá-la. Mas a tendência de todos os sistemas é para a desregulação. E, além disso, os partidos têm as suas clientelas, e há corporações e lobbies com maior capacidade reivindicativa do que outros.

Terá sido o que sucedeu nesta questão das polícias. Não sei por que razão António Costa decidiu premiar a PJ, ignorando as outras forças de segurança. Dizem-me que tem uma relação cúmplice com o diretor nacional da PJ, Luís Neves. Mas é estranho um homem com a sua experiência ter cometido tal erro. O descontentamento da PSP e da GNR vem de longe, e ele decerto não o desconhecia. A situação da PSP, que conheço melhor, é deplorável e o desânimo muito grande, espelhado no número anormal de suicídios de agentes. O aumento isolado do pessoal da Judiciária provocaria pois, inevitavelmente, reações negativas nas outras forças.

Mas, não contente com o primeiro erro, enquanto os polícias protestavam inutilmente na rua, o Governo cedia às reivindicações dos agricultores. Depois de terem sido ultrapassados pelos carros da PJ, os agentes da PSP e da GNR ficavam a ver passar os tratores… Parecia uma provocação.

Um político que todos consideram muito hábil, acaba o mandato a tomar decisões da maior inabilidade política.

QOSHE - O Último erro de António Costa - José António Saraiva
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

O Último erro de António Costa

5 14
16.02.2024

Quando assumi a direção do Expresso, em 1983, a situação era esta: havia 17 jornalistas no quadro, muitos deles com nome firmado (Maria João Avillez, Vicente Jorge Silva, Joaquim Vieira, José Júdice, etc.), que ganhavam todos o mesmo – julgo que 60 contos. Cinco destes tinham funções de chefia – coordenavam as 4 secções em que o caderno principal se dividia (Nacional, Internacional, Economia e Desporto) e a Revista – pelas quais recebiam um suplemento mensal de 15 contos.

Existiam, depois, pagamentos ‘por baixo da mesa’. Por exemplo, a secção Gente, na altura redigida por Pedro d’Anunciação, era paga à parte. Estes bónus tinham sido instituídos pelo meu antecessor no cargo, Marcelo Rebelo de Sousa (Augusto de Carvalho, que exercia a direção quando entrei, fazia-o interinamente).

Cancelei esses pagamentos – não fazia sentido um jornalista do quadro receber extras – e a situação ficou muito clara: todos os jornalistas recebiam o mesmo ordenado, e os coordenadores tinham um suplemento pelo exercício de funções de chefia, que caía quando essas funções terminavam.

Devo dizer que, quanto a questões salariais, foram os tempos mais tranquilos que vivi na minha........

© Jornal SOL


Get it on Google Play