Nunca partilhei da ilusão de que a Rússia, após a queda do comunismo, se tornaria uma democracia e se juntaria ao Ocidente. Embora em certos aspetos faça parte da cultura ocidental, com escritores como Tolstói ou Dostoiévski, músicos como Stravinsky ou Tchaikovsky, pintores como Kandinsky ou Chagall, cineastas como Eisenstein ou Tarkóvski, a Rússia sempre foi um mundo à parte, fechado sobre si próprio, com as suas regras, as suas leis, a sua idiossincrasia. E a sua tradição não tem nada de democrático. Houve Catarina, Pedro o Grande, Estaline, agora Putin. A ideia de que a ‘cortina de ferro’ tinha caído definitivamente e a Europa podia ser uma só, foi uma miragem. Não se encaixava na ‘ordem natural’ das coisas. Em todas as estruturas humanas há uma tendência para a bipolarização. Nos países, nos partidos políticos, nos clubes desportivos, nunca há unanimidade de opiniões: há sempre, pelo menos, duas fações – uma favorável ao poder, outra contra. Mesmo nas empresas, há os que estão de acordo com a liderança, com a estratégia seguida, com as opções tomadas, e outros que discordam e propõem caminhos diferentes. E no mundo é igual. Nunca haverá um planeta onde todos tenham os mesmos regimes, os mesmos valores e convivam em paz. A tendência é para se constituírem dois blocos, às vezes três, que se digladiam. Depois de um período em que houve uma espécie de ordem tripolar, com EUA, Rússia e China a liderarem blocos estratégicos, temos de novo um mundo encabeçado pelos EUA, que inclui a Europa, o Canadá e países que adotaram a cultura ocidental, como o Japão e Israel; doutro lado, a Rússia e a China, seguidas pelo mundo árabe e por muitos países asiáticos, africanos e da América Latina. De certa maneira, é o mundo rico contra o mundo pobre. No mundo rico vigoram democracias, porque as democracias só são possíveis com extensas classes médias. São estas que sustentam as democracias. Sem elas, a democracia é impossível. Nos países pobres temos regimes autoritários ou autocráticos, como na China, na Rússia, na Coreia do Norte, na totalidade dos países árabes, e em muitos países africanos e do centro e sul da América. Estes dois mundos estão em guerra. E numa guerra não é possível estar a meio da ponte: ou se está num lado ou no outro. Ora, neste aspeto, a realização no Ocidente de manifestações de apoio à ‘causa palestiniana’ e de hostilidade em relação a Israel é perplexizante. Há dias, na Escócia, num jogo de futebol do Celtic de Glasgow, surgiram subitamente nas bancadas bandeiras e faixas a favor da Palestina, e os espetadores gritavam palavras de ordem contra Israel. Não sendo com certeza todos árabes, saberiam o que estavam a fazer? Um adepto do Celtic comparava a situação dos palestinianos à dos escoceses. «Olhamos a Palestina como um paralelo óbvio: o confisco das terras, a legislação repressiva e a força militar excessiva para defender essas injustiças», afirmou. Mas haverá paralelo? Estamos a falar de zonas do globo, de culturas, hábitos e religiões radicalmente diferentes. Ao contrário do que muitos dizem, não existe uma ‘causa palestiniana’. O que existe é uma causa antijudaica: uma guerra sem quartel contra Israel, a vontade de acabar com aquele Estado e expulsar dali os judeus. O Hamas não defende os palestinianos. Não quer saber dos palestinianos para nada. Usa-os como carne para canhão de uma guerra religiosa. O Ocidente deve entender isto. E pensar que Israel não é só Israel – é também uma guarda avançada do Ocidente na região. Com a guerra a decorrer na Ucrânia, a Europa tem de pensar muito bem na sua vida. Entalada entre a Rússia, a norte, e o mundo árabe, a sul, está ameaçada. Até porque há uma diferença essencial entre ela e os seus inimigos: enquanto nestes a percentagem de europeus é diminuta, na Europa a percentagem de imigrantes, sobretudo muçulmanos, é enorme. E, quais cavalos de Troia, formam comunidades fechadas, nas quais cultivam os seus hábitos e crenças. Na Ucrânia e na Palestina travam-se batalhas decisivas para os europeus e para o mundo ocidental. Se a Ucrânia soçobrar às mãos da Rússia, e Israel for derrotado pelos árabes, os nossos valores estão em risco, a começar pela democracia. Os que aqui participam livremente em manifestações contra Israel estão no fundo a pôr em causa o nosso modo de vida.

QOSHE - O mundo partido ao meio - José António Saraiva
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O mundo partido ao meio

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16.11.2023

Nunca partilhei da ilusão de que a Rússia, após a queda do comunismo, se tornaria uma democracia e se juntaria ao Ocidente. Embora em certos aspetos faça parte da cultura ocidental, com escritores como Tolstói ou Dostoiévski, músicos como Stravinsky ou Tchaikovsky, pintores como Kandinsky ou Chagall, cineastas como Eisenstein ou Tarkóvski, a Rússia sempre foi um mundo à parte, fechado sobre si próprio, com as suas regras, as suas leis, a sua idiossincrasia. E a sua tradição não tem nada de democrático. Houve Catarina, Pedro o Grande, Estaline, agora Putin. A ideia de que a ‘cortina de ferro’ tinha caído definitivamente e a Europa podia ser uma só, foi uma miragem. Não se encaixava na ‘ordem natural’ das coisas. Em todas as estruturas humanas há uma tendência para a bipolarização. Nos países, nos partidos políticos, nos clubes desportivos, nunca há unanimidade de opiniões: há sempre, pelo menos, duas fações – uma favorável ao poder, outra contra. Mesmo nas empresas, há os que estão de acordo com a liderança, com a estratégia seguida, com as opções........

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