A grande impulsionadora da institucionalização do aborto em Portugal foi Zita Seabra, quando era deputada do PCP. Em discursos inflamados, insurgia-se no Parlamento contra a lei que mandava para a prisão mulheres por terem abortado, ou que as empurrava para abortos clandestinos em que arriscavam a vida.

A palavra-chave era ‘despenalização’. Com esta, acabar-se-iam as injustiças e poupar-se-iam imensas vidas.

Muito boa gente foi sensível a esta argumentação. Quem queria ver mulheres na prisão por terem feito abortos? Bem bastava o sofrimento físico e moral por que tinham passado.

A minha posição sobre o assunto, desde o princípio, foi um pouco diferente. Fazia uma distinção entre a ‘lei’ e a ‘aplicação da lei’. As leis – dizia eu – têm de estar de acordo com ‘princípios’, mas a sua aplicação deve ter em conta as ‘circunstâncias’. Ora, no plano dos princípios, o aborto não poderia aceitar-se, por razões óbvias. Sendo a destruição de uma vida humana em formação, a lei não a poderia consagrar. Mas a justiça poderia não a penalizar, tendo em conta a situação de desespero ou necessidade em que ocorrera.

É preciso perceber que a proibição do aborto, quando foi instituída, representou um avanço civilizacional. Foi mais um passo na afirmação da inviolabilidade da vida humana. Tal como a proibição da pena de morte.
Miguel Torga, que não era propriamente um reacionário, contava num dos seus Diários uma comovente história. Apareceu um dia no seu consultório – ele era médico, estabelecido em Coimbra – uma mulher grávida com vários filhos a pedir que lhe fizesse um aborto. O médico perguntou-lhe por que o fazia, e ela respondeu:
– Já tenho estes filhos todos, não posso ter mais nenhum.
Ao que ele lhe disse:
– Então fica cá este (e agarrou numa das crianças) e deixe nascer o bebé que traz na barriga.

Para Torga, não havia diferença nenhuma entre aquele bebé em gestação e as outras crianças. A isto chama-se respeito pela condição humana.
Em Portugal, porém, caminhou-se em sentido oposto.

O primeiro passo foi a despenalização do aborto em circunstâncias muito especiais, como uma gravidez na sequência de violação. Depois ampliaram-se as situações em que era legítimo abortar e alargaram-se os prazos. E finalmente veio a liberalização completa. Até uma consulta prévia entre a mulher que queria abortar e uma especialista clínica foi abolida, por ser considerada humilhante.

Ou seja: começou-se na despenalização e acabou-se na liberalização.
Para suavizar o assunto, a palavra ‘aborto’ foi retirada de circulação e substituída por uma sigla anódina: IVG.

Em Portugal (e no Ocidente em geral) o aborto banalizou-se. Em vez de ser um ato a evitar a todo o custo, só assumido em circunstâncias extremas, passou a ser uma coisa ‘normal’. E até – imagine-se! – um motivo de orgulho. Viram-se mulheres exibindo orgulhosamente cartazes com a frase: «Eu abortei!». Orgulho, porquê? Por interromper a formação de um ser humano? Meu Deus!

O certo é que, em nome dos ‘direitos das mulheres’, muita gente bem formada aceita hoje o aborto pacificamente. É uma opção da mulher e ninguém tem nada com isso – diz-se. Mas será mesmo? Não é verdade que o direito de cada um acaba onde começam os direitos dos outros? Terá uma mulher o direito de vida ou de morte sobre a vida que traz no ventre? Será um assunto exclusivo dela? Na Roma antiga, os pais podiam dispor da vida dos filhos, já que eram eles que lhes davam o ser. Mas desde esse tempo passaram mais de 2000 anos.

Daí para cá houve um longo caminho na consolidação do respeito pela vida humana. Os pais deixaram de ter direitos sobre a vida dos filhos, os reis sobre a vida dos súbditos, os senhores sobre a vida dos escravos. Aboliu-se a pena de morte.
Subitamente, porém, começaram a dar-se passos para trás. Legalizou-se o aborto, legalizou-se a eutanásia, pede-se o regresso da pena de morte.

Ao incluir o aborto na Constituição, a França deu um violento passo atrás na civilização. Levou a cabo um retrocesso civilizacional. Cedeu ao laxismo e ao facilitismo, atropelando os valores e os princípios em nome dos fins.

Relativizou a vida humana. Afinal, qual é a diferença essencial entre fazer um aborto e deitar um feto no lixo à nascença?

Mas vendo friamente as coisas, quem pôs na Constituição o aborto foi o mesmo povo que há pouco mais de dois séculos levou a cabo uma revolução onde se cometeram as maiores atrocidades, as maiores barbaridades, as maiores selvajarias, num desvario sangrento e no mais absoluto desrespeito pela condição humana.

QOSHE - Um aborto na Constituição - José António Saraiva
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Um aborto na Constituição

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22.03.2024

A grande impulsionadora da institucionalização do aborto em Portugal foi Zita Seabra, quando era deputada do PCP. Em discursos inflamados, insurgia-se no Parlamento contra a lei que mandava para a prisão mulheres por terem abortado, ou que as empurrava para abortos clandestinos em que arriscavam a vida.

A palavra-chave era ‘despenalização’. Com esta, acabar-se-iam as injustiças e poupar-se-iam imensas vidas.

Muito boa gente foi sensível a esta argumentação. Quem queria ver mulheres na prisão por terem feito abortos? Bem bastava o sofrimento físico e moral por que tinham passado.

A minha posição sobre o assunto, desde o princípio, foi um pouco diferente. Fazia uma distinção entre a ‘lei’ e a ‘aplicação da lei’. As leis – dizia eu – têm de estar de acordo com ‘princípios’, mas a sua aplicação deve ter em conta as ‘circunstâncias’. Ora, no plano dos princípios, o aborto não poderia aceitar-se, por razões óbvias. Sendo a destruição de uma vida humana em formação, a lei não a poderia consagrar. Mas a justiça poderia não a penalizar, tendo em conta a situação de desespero ou necessidade em que........

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