Conheço pessoas que não depositam no banco todo o dinheiro que têm e guardam algum em casa para, de vez em quando, terem o prazer de contar as notas. Calculo que seja uma sensação orgástica, vinda do fundo do ser.

Essas pessoas são também ultra avarentas: têm horror a desfazer-se do dinheiro. Para elas, o dinheiro não é um meio, é um fim em si. O seu gozo não consiste naquilo que podem fazer com ele: consiste na sua posse.

Diferente é o caso de pessoas que, dando muito valor ao dinheiro, o usam como um instrumento. Não o poupam por avareza mas para o usarem de forma seletiva, racional.

Belmiro de Azevedo disse-me um dia que tinha um carro com 10 anos mas não o trocava, pois não lhe dava quaisquer problemas. E reparei que calçava uns sapatos gastos. Dele também se dizia que nunca andava de avião em classe Executiva, explicando: «Recuso-me a pagar o dobro do preço para chegar ao mesmo tempo dos outros passageiros». Porém, não gastando um tostão mal gasto, era capaz de investir milhões num negócio que considerasse vantajoso.

Também Balsemão tinha fama de avarento – e era-o, de certo modo. Uma vez, pouco depois de sair de primeiro-ministro e retomar a presidência da administração do Expresso, ocupou-se um dia inteiro a tirar aqui 20, ali 50, acolá 70 escudos nos pagamentos dos artigos aos colaboradores. Quando lhe manifestei estranheza por isso, que me parecia mesquinho, respondeu-me: «É pouco em cada um, mas tudo somado ainda é dinheiro».

Outra vez, adiou uma reunião, explicando que tinha sido convidado pela Gulbenkian para fazer uma palestra no mesmo dia, e adiantou: «Eles pagam 80 contos…». E a filha Mónica, que estava presente, reagiu: «Ó pai, nem que fossem 8!». Tal pai, tal filha.

Mas Balsemão não se importava de gastar dinheiro naquilo que considerava útil ou necessário. Por exemplo, fazia questão que os jornalistas convidassem políticos para almoçar, porque achava (com razão) que os políticos à mesa se abriam mais. E evidentemente era o jornal que pagava as faturas.

Para o bem e para o mal, eu nunca liguei muito ao dinheiro. Não digo que não ligo nada, porque seria ofensivo. Mas para mim o dinheiro só ganha verdadeiro valor quando pode materializar-se em algo que me faça falta ou dê prazer. Não valorizo o dinheiro ‘em si’.

Uma pequena história retrata bem esta ideia. Comecei a minha vida profissional a trabalhar num atelier de arquitetura quando ainda era estudante de Belas-Artes. Um dos primeiros projetos em que colaborei foi numa urbanização em Miraflores (não sonhando que um dia iria ali viver). Isto passava-se em 1969. Os responsáveis pelo projeto eram os arquitetos Manuel Tainha e José Rafael Botelho, sendo este que me pagava o ordenado. O pagamento era feito em dinheiro – e eu recebia-o, colocava-o em cima do estirador, e ele ali ficava vários dias. Não precisava do dinheiro e confiava nas pessoas, não me passando pela cabeça que alguém pudesse roubar-mo. Mas ao terceiro ou quarto mês em que isso aconteceu, o arquiteto Botelho veio dizer-me diplomaticamente (era um homem muito sereno e educado): «Ó Saraiva, não deve deixar o dinheiro aí abandonado. Não é que alguém o vá roubar. Mas há pessoas humildes que aqui trabalham, como a senhora da limpeza, e, para essas pessoas a quem o dinheiro faz falta, é uma afronta ver as notas assim desprezadas».

Entendi a lição e nunca mais deixei ali um tostão.

Vem tudo isto a propósito de um episódio que me aconteceu há dias. Ia lanchar a uma croissanteria perto de minha casa quando, olhando para o chão, vi uma moeda de 5 cêntimos. Estava suja de terra e hesitei sobre se valeria a pena baixar-me para a apanhar. Mas foi uma fração de segundo.

Não ligando eu ao dinheiro, sinto um estranho contentamento quando encontro uma nota ou uma moeda na rua. É uma reação quase infantil. Assim, baixei-me, limpei a moeda com os dedos e guardei-a no bolso.

Chegado à croissanteria, fiz a encomenda ao balcão – um croissant com fiambre e uma empada de galinha –, perguntei quanto era, paguei, peguei no tabuleiro e, como estava bom tempo, fui para a zona da esplanada. Pousei o tabuleiro numa mesa, sentei-me, mas voltei a levantar-me: tinha pegado na moeda suja e devia lavar as mãos. Quando voltei dos lavabos, porém, percebi que algo se tinha passado. Havia à volta da minha mesa uma estranha agitação. Aproximei-me. Em cima do tampo estava o croissant desfeito e a empada virada ao contrário. Os pombos tinham atacado sem contemplações aquele pitéu ali deixado incautamente à sua mercê.

Fiquei desolado.

Ainda pensei em ir comprar outro lanche, mas não o fiz: comi a empada (que apesar de estar virada ao contrário não tinha vestígios de ter sido debicada), deitei fora os restos do croissant e saí. No bolso levava a moeda cujo achado me tinha provocado tanta satisfação. E pensei de mim para mim que, feitas as contas, não se tinha perdido tudo…

QOSHE - Uma moeda de 5 cêntimos - José António Saraiva
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Uma moeda de 5 cêntimos

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04.04.2024

Conheço pessoas que não depositam no banco todo o dinheiro que têm e guardam algum em casa para, de vez em quando, terem o prazer de contar as notas. Calculo que seja uma sensação orgástica, vinda do fundo do ser.

Essas pessoas são também ultra avarentas: têm horror a desfazer-se do dinheiro. Para elas, o dinheiro não é um meio, é um fim em si. O seu gozo não consiste naquilo que podem fazer com ele: consiste na sua posse.

Diferente é o caso de pessoas que, dando muito valor ao dinheiro, o usam como um instrumento. Não o poupam por avareza mas para o usarem de forma seletiva, racional.

Belmiro de Azevedo disse-me um dia que tinha um carro com 10 anos mas não o trocava, pois não lhe dava quaisquer problemas. E reparei que calçava uns sapatos gastos. Dele também se dizia que nunca andava de avião em classe Executiva, explicando: «Recuso-me a pagar o dobro do preço para chegar ao mesmo tempo dos outros passageiros». Porém, não gastando um tostão mal gasto, era capaz de investir milhões num negócio que considerasse vantajoso.

Também Balsemão tinha fama de avarento – e era-o, de certo modo. Uma vez, pouco depois de sair de primeiro-ministro e retomar a presidência da administração do........

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