Há muito tempo escrevi que a tendência da globalização é para haver uma só raça, uma só cultura, uma só língua. À medida que a circulação das pessoas no Globo aumenta, que os casamentos entre pessoas de raças diferentes se multiplicam, que todos têm acesso ao mesmo tempo às mesmas notícias, que o inglês se impõe como língua franca e que o dólar se impõe como moeda planetária, que as marcas tendem a ser globais e as lojas são iguais em toda a parte do mundo, o rolo compressor da uniformização avança.

Neste processo, muita coisa morre. O cinema europeu já morreu e nas salas só passam filmes americanos. Os produtos nacionais desaparecem. O pequeno comércio é trucidado. A diversidade diminui.

Nos anos 90 fui convidado pelo então ministro Valente de Oliveira para um almoço no seu Ministério. Ele tinha a responsabilidade de coordenar as chamadas Grandes Opções do Plano – criadas um pouco à imagem dos planos de fomento do tempo do Estado Novo -, e convidava pessoas que achava inspiradoras. Nesse ano, calhou-me a mim. Não tinha ideia nenhuma sobre o que lhe havia de dizer. Mas nos breves minutos de espera na antecâmara do seu gabinete veio-me à cabeça uma ideia. Portugal, sendo um país pequeno, não podia produzir em quantidade – tendo de investir fortemente na qualidade. E dei-lhe um exemplo que me pareceu sugestivo. Na altura tínhamos uma indústria de mobiliário antiquada, sediada em Paços de Ferreira, com peças de linhas pesadas e de madeira escura: camas, mesas, cómodas e armários com torcidos e tremidos, caixões exageradamente trabalhados. Ora, sendo nós um país com uma extensa área florestal, não deveríamos dar mais atenção a este tema, apostando num design mais moderno, mais leve, mais funcional?

E dei-lhe o exemplo dos nórdicos, que conseguiram impor (e exportar para muitos países) um mobiliário de madeira clara e linhas simples.

Para mim, era fácil falar deste tema. Nos tempos que frequentei a Escola de Belas Artes começara a surgir em Portugal uma plêiade de designers – Daciano da Costa, Sena da Silva, António Garcia, Eduardo Afonso Dias, etc. – que concebiam móveis para algumas empresas pioneiras como a Altamira, a Interforma e sobretudo a Olaio, e que começavam a ter algum mercado.

É altura de explicar que a palavra design, nessa época, não significava apenas o ‘desenho’. Era muito mais do que isso. Tratava-se de conceber peças de mobiliário capazes de serem produzidas, não por marceneiros, mas por máquinas. Design era sinónimo de industrial design. O designer não tinha de perceber só de estética – tinha de conhecer os mecanismos industriais de modo a projetar peças passíveis de fabricar em série.

Ao conceber uma peça, o designer tinha de pensar em tudo: na estética, no conforto, na resistência, na durabilidade, no processo de produção industrial em fábrica, e até mesmo no transporte (com a peça desmontada e encaixotada).

Expliquei ao ministro que tanto custa construir uma peça bonita como uma peça feia. É apenas uma questão de desenho. E o preço do desenho não conta num produto fabricado em série: o seu peso aí é insignificante. Assim, em vez daqueles pesados móveis de Paços de Ferreira, poderíamos ter uma indústria moderna, com qualidade e capacidade exportadora. Tínhamos bons designers, preparados para o fazer.

Note-se que esta conversa se passava muito antes da abertura em Portugal da primeira loja da IKEA, que só ocorreria em 2004. E que significaria tudo do que eu falara ao ministro: móveis simples, leves, fáceis de produzir em série e de transportar até casa do cliente.

Sucede que, com a vinda da IKEA para Portugal, toda essa geração de designers portugueses, que poderia ter feito escola e dado origem a uma indústria forte, acabou por morrer sem deixar descendentes. Quem quer hoje montar uma casa vai à IKEA e compra tudo: mesas, cadeiras, estantes, sofás, armários de sala e de cozinha, candeeiros…

Qualquer dia, em todo o mundo, só haverá uma linha de mobiliário: aquela que a IKEA impõe. A globalização tem um lado positivo mas representa um empobrecimento. Em Portugal já não há gente a desenhar móveis, porque sabe que os clientes seriam poucos. E o mesmo terá acontecido em muitos países, pelo mundo fora. Um gabinete de desenho sediado na Suécia, empregando centenas de designers, concebe mobiliário que será produzido aos milhões e exportado para o mundo inteiro, condicionando o mercado, impondo um gosto e matando em cada país uma profissão criativa que contribuía para a diversidade.

Por mim, tenho saudades desses designers que conheci nos anos 70 e 80, que concebiam peças de mobiliário de muita qualidade – que algumas empresas pioneiras, como a Olaio, depois produziam.

Esse tempo acabou. A criatividade e a diversidade ficaram a perder.

QOSHE - Vítimas da globalização - José António Saraiva
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Vítimas da globalização

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26.01.2024

Há muito tempo escrevi que a tendência da globalização é para haver uma só raça, uma só cultura, uma só língua. À medida que a circulação das pessoas no Globo aumenta, que os casamentos entre pessoas de raças diferentes se multiplicam, que todos têm acesso ao mesmo tempo às mesmas notícias, que o inglês se impõe como língua franca e que o dólar se impõe como moeda planetária, que as marcas tendem a ser globais e as lojas são iguais em toda a parte do mundo, o rolo compressor da uniformização avança.

Neste processo, muita coisa morre. O cinema europeu já morreu e nas salas só passam filmes americanos. Os produtos nacionais desaparecem. O pequeno comércio é trucidado. A diversidade diminui.

Nos anos 90 fui convidado pelo então ministro Valente de Oliveira para um almoço no seu Ministério. Ele tinha a responsabilidade de coordenar as chamadas Grandes Opções do Plano – criadas um pouco à imagem dos planos de fomento do tempo do Estado Novo -, e convidava pessoas que achava inspiradoras. Nesse ano, calhou-me a mim. Não tinha ideia nenhuma sobre o que lhe havia de dizer. Mas nos breves minutos de espera na antecâmara do seu gabinete veio-me à cabeça uma ideia. Portugal,........

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