Entrevistei várias vezes Mário Soares. Para a imprensa escrita e para a televisão. As entrevistas tiveram lugar nos estúdios da RTP do Lumiar e da 5 de Outubro, na sede do PS no Largo do Rato, na residência oficial do primeiro-ministro em S. Bento, no Palácio de Belém, na sua casa do Campo Grande. Almoçámos várias vezes em restaurantes diversos – desde o La Trattoria, nas Amoreiras, ao Nobre, na Ajuda, em vários do Bairro Alto e, claro, no Pabe, na Rua Duque de Palmela.

Ao contrário de outros primeiros-ministros e presidentes da República, que almoçavam na residência oficial – fosse em S. Bento ou em Belém -, Mário Soares gostava de almoçar no restaurante. Saía à hora de almoço e ia comer fora. E era um bom garfo.

Numa dessas entrevistas, realizada por volta de 1990, em sua casa, comecei a certa altura a perceber que não estava a gostar do rumo da conversa. Subitamente interrompeu-me e disparou:

Ao fim de vários minutos a ouvi-lo fazer perguntas a si próprio e a dar as respostas, foi a minha vez de o interromper:

E ele saiu-se com esta:

Na sexta-feira passada, no chamado ‘último debate’ com todos os líderes, lembrei-me daquela frase: «Deixe-me vender o meu peixe»…

Todos estavam ali a vender o seu peixe.

Confesso que a situação me constrangeu. Mas vamos ao princípio.

Antes do debate, os líderes dos vários partidos caminharam para o estúdio como um grupo de velhos amigos, sorrindo uns para os outros, apertando as mãos. Sabiam que lá dentro iriam esgatanhar-se, atacar-se. A situação era, portanto, falsa. Mas pouco importava.

Dentro do estúdio, todos se perfilaram atrás de um pequeno púlpito, perante o jornalista Carlos Daniel. Tratando-os sem cerimónias, este começou a fazer-lhes perguntas sobre temas que já todos conhecemos de cor e salteado: O que farão no caso de ganharem as eleições? E de as perderem? E de haver uma maioria de direita? E uma maioria de esquerda? E não faltaram, claro, os assuntos estafados: a educação, a saúde, a habitação – como na cantilena do Sérgio Godinho.

É óbvio que as respostas, para lá de já serem conhecidas, não tinham qualquer interesse – pois só um dos candidatos ganhará as eleições e terá possibilidade de pôr as promessas em prática. E, mesmo assim, só muito relativamente, pois nenhum Governo faz metade do que prometeu na campanha.

No meio destas lengalengas, o jornalista não fazia qualquer esforço para dar à conversa um mínimo de novidade. Não procurava saber o que aqueles homens e mulheres pensam sobre a imigração, que é hoje o grande tema de debate na Europa. Nem o que pensam sobre o que se passa em muitas escolas, onde se verificam episódios gravíssimos. Nem sobre as casas de banho mistas. Nem sobre os programas de mudança de sexo a partir da adolescência. Nem sobre a abolição da esfera armilar no símbolo do Estado. Nem sequer sobre as guerras na Ucrânia e no Médio Oriente, onde já morreram meio milhão de seres humanos. Isto poderia trazer algum interesse à conversa. Mas o que importava ali não era isso. Aqueles líderes não estavam ali para pensar mas para papaguear cartilhas; e as televisões não queriam novidades mas a repetição do já conhecido.

Para mim, aquele espetáculo foi penoso de ver e de ouvir. As perguntas estafadas, as respostas papagueadas, a situação em si.

Os políticos não parecem perceber que aquilo os menoriza, os infantiliza, os amesquinha. Estarem ali sentados em cadeirinhas altas, diante de um jornalista que os interroga como meninos de escola, coloca-os numa situação humilhante. Será que Ramalho Eanes, ou Cavaco Silva, ou Álvaro Cunhal se sujeitariam a participar naquela cena?

E esta não acabou ali. Findo o ‘exame’ no estúdio, veio o júri esmiuçar o que se passara. Vieram os inevitáveis comentadores. E ao contrário dos ‘examinandos’, estes estavam bem sentados. E doutoralmente lá foram explicando o que os outros deveriam e não deveriam ter dito, os erros que cometeram, o que falhou. Afinal, são eles que conhecem todos os segredos da política: os rapazes que ali tinham estado eram uns meros aprendizes. E no fim dos comentários, foram-lhes atribuídas notas.

Foi a isto que a política chegou.

Os líderes não lideram – dizem o que for preciso para angariar votos, e são joguetes nas mãos das televisões, que os utilizam e lhes dão ordens. E eles sujeitam-se, porque precisam de aparecer, de ser vistos, de ter tempo de antena. E depois espantam-se de que poucos os levem a sério.

QOSHE - Vender o peixe - José António Saraiva
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Vender o peixe

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08.03.2024

Entrevistei várias vezes Mário Soares. Para a imprensa escrita e para a televisão. As entrevistas tiveram lugar nos estúdios da RTP do Lumiar e da 5 de Outubro, na sede do PS no Largo do Rato, na residência oficial do primeiro-ministro em S. Bento, no Palácio de Belém, na sua casa do Campo Grande. Almoçámos várias vezes em restaurantes diversos – desde o La Trattoria, nas Amoreiras, ao Nobre, na Ajuda, em vários do Bairro Alto e, claro, no Pabe, na Rua Duque de Palmela.

Ao contrário de outros primeiros-ministros e presidentes da República, que almoçavam na residência oficial – fosse em S. Bento ou em Belém -, Mário Soares gostava de almoçar no restaurante. Saía à hora de almoço e ia comer fora. E era um bom garfo.

Numa dessas entrevistas, realizada por volta de 1990, em sua casa, comecei a certa altura a perceber que não estava a gostar do rumo da conversa. Subitamente interrompeu-me e disparou:

Ao fim de vários minutos a ouvi-lo fazer perguntas a si próprio e a dar as respostas, foi a minha vez de o interromper:

E ele saiu-se com esta:

Na sexta-feira passada, no chamado ‘último........

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