T erei sido influenciado poe Edgar Allan Poe?», interroga-se Alfred Hitchcock no prefácio a uma edição de Histórias Extraordinárias, de Poe. «Para ser franco, não o posso afirmar com certeza». De seguida, o mestre do suspense recorda um episódio que se passou tinha quatro ou cinco anos. Tendo acordado «em sobressalto» durante a noite, levantou-se e encontrou a casa mergulhada no silêncio e na escuridão. Estava sozinho. Em pânico, dirigiu-se à cozinha, abriu um armário e tirou de lá qualquer coisa para comer. Os pais, que tinham saído, foram encontrá-lo, em lágrimas, com a boca cheia de fiambre… «Desde esse dia», declara no seu tom irónico, «há duas coisas que não suporto: estar sozinho em casa durante a noite e comer carnes frias».

Outra coisa que não suportava era ovos. «É pior do que medo – eles enojam-me», confessou a Oriana Falacci. Repulsa essa que, de certo modo, encaixa num comentário da jornalista italiana: «A única coisa que lhe interessa em toda a criação é o oposto do que nasce: só lhe interessa o que morre». Em resumo: Hitchcock tinha uma obsessão pela morte.

Nisso, era bastante parecido com Edgar Poe, o escritor norte-americano que nasceu em Boston em 1809 e ficou órfão aos quatro anos. Acolhido por uma família abastada, Poe viajou por Inglaterra, Escócia e Irlanda, voltando à América para frequentar a universidade. Abandonou os estudos por causa de dívidas de jogo e alistou-se no exército. Chegou a combater e ainda frequentou a Academia de West Point, de onde acabou expulso por indisciplina.

Tornou-se um jornalista e escritor de sucesso, mas a morte da mulher, em 1847, foi demais para ele. Entregou-se à bebida e morreu como um indigente, depois de ser encontrado num estado lastimoso em frente a um bar de Baltimore, com a roupa em farrapos e em delirium tremens.

«Não creio que exista uma parecença real entre Edgar Allan Poe e eu», continua Hitchcock. «Edgar Poe era um poeta maldito, e eu sou um cineasta comercial». De facto, Poe morreu na miséria e Hitchcock ficou riquíssimo. Mas a influência do escritor no realizador parece indesmentível.

Nestas Histórias Extraordinárias encontramos pelo menos dois casos que denotam a fobia de ser enterrado vivo. No conto ‘A pipa de amontillado’, o protagonista vinga-se de um velho rival atraindo-o para a sua adega, numa cave, e prendendo-o ali a uma corrente. Depois, constrói tijolo a tijolo uma parede que isola a vítima, deixando-a sepultada para sempre.

Também no final do célebre ‘O escaravelho de ouro’ há uma referência semelhante, quando alguém se questiona acerca de uns esqueletos encontrados num buraco. «É evidente que Kidd – se Kidd queria realmente esconder este tesouro, do que não tenho dúvidas – é evidente que ele teve de ter ajuda para fazer o trabalho. Mas, completada a tarefa, deve ter pensado que era melhor eliminar todos os conhecedores do seu segredo. Talvez um par de golpes de picareta tenham sido suficientes, enquanto os seus ajudantes estavam ocupados no buraco»…

Quem tiver visto, em finais dos anos 80, ou mais recentemente, a série Hitchcock Apresenta, talvez se recorde de um episódio em que um recluso engendrava um plano para escapar da prisão metendo-se dentro de um caixão, em lugar do morto. O coveiro estava incumbido de o avisar quando pudesse sair em liberdade. Ou de outro episódio em que um homem sobrevivia a um acidente grave de automóvel mas ficava completamente paralisado e incapaz de falar. Não preciso de contar o final. «Ser enterrado vivo é, fora de dúvida, o mais aterrador desses extremos que sempre caíram em cima dos meramente mortais», meditava Poe. «As fronteiras que separam a vida da morte são, quando muito, obscuras e vagas. Quem é que deve dizer onde acaba uma e começa a outra? Sabemos que há doenças em que acontece a cessação total de todas as funções aparentes de vitalidade, e em que, contudo, essa cessação é uma simples suspensão […] uma pausa temporária num mecanismo incompreensível».

Hitchcock dizia que não podia «afirmar com certeza» se foi influenciado por Poe. Talvez ele não pudesse. Mas nós podemos.

QOSHE - Hitchcock apresenta… - José Cabrita Saraiva
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Hitchcock apresenta…

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29.02.2024

T erei sido influenciado poe Edgar Allan Poe?», interroga-se Alfred Hitchcock no prefácio a uma edição de Histórias Extraordinárias, de Poe. «Para ser franco, não o posso afirmar com certeza». De seguida, o mestre do suspense recorda um episódio que se passou tinha quatro ou cinco anos. Tendo acordado «em sobressalto» durante a noite, levantou-se e encontrou a casa mergulhada no silêncio e na escuridão. Estava sozinho. Em pânico, dirigiu-se à cozinha, abriu um armário e tirou de lá qualquer coisa para comer. Os pais, que tinham saído, foram encontrá-lo, em lágrimas, com a boca cheia de fiambre… «Desde esse dia», declara no seu tom irónico, «há duas coisas que não suporto: estar sozinho em casa durante a noite e comer carnes frias».

Outra coisa que não suportava era ovos. «É pior do que medo – eles enojam-me», confessou a Oriana Falacci. Repulsa essa que, de certo modo, encaixa num comentário da jornalista italiana: «A única coisa que lhe interessa em toda a criação é o oposto do que nasce: só lhe........

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