Foi em 1985 que fiz a primeira de várias visitas à Quinta da Torre de Santo António situada perto de Torres Novas. Naquela época, era propriedade da Sra. Gertrude Ramada Curto que preferiu ser tratada como “Dona Gertie”. “Pretendo me mudar para a Califórnia e desejo vender o meu palacete e tudo o que está dentro dele”, disse-me ela ao dar instruções para a minha imobiliária agir como agente exclusivo de vendas internacionais. Como o “tudo” era composto por um vasto conjunto de quadros, porcelanas, móveis e uma biblioteca de raras primeiras edições, foram necessários vários dias para fazer um inventário e, uma inovação na época, fazer uma gravação em vídeo do interior do castelo e da capela, adega, armazéns, jardins paisagísticos e vinhas de uma propriedade com sessenta e cinco hectares. Este vídeo e inventário foram exibidos na exposição Money86 em Hong Kong e copiados para famílias nobres, oligarcas e “nouveau riche” em muitos países.

Dona Gertie foi uma aristocrata formidável, mas não altiva, que aos poucos foi me revelando a história da Quinta e do seu papel como cenário para a vida da alta sociedade em meados do século XX. Ela nasceu como Gertrude Schwetz na Áustria numa família rica que incluía uma prima, Magda Lupescu Hohenzollern, que era consorte do Rei Carol II da Romênia (falecido no Estoril em 1953). Em tenra idade, ela tornou-se a terceira esposa do cientista judeu franco-russo Sergei Voronoff, que era famoso, mas posteriormente ridicularizado, pela sua pesquisa sobre o transplante de glândulas de macaco com o seu potencial de rejuvenescimento. Gertie e Sergei viviam no seu castelo Grimaldi no Mónaco, mas viajaram muito, inclusive para Nova Iorque, onde ela “perdeu” uma joia que consistia em 194 diamantes, 21 rubis e 56 âmbar-topázio. Este foi encontrado numa estrada no Bronx por um cidadão honesto que recebeu uma recompensa e um telegrama de agradecimento de “Gertrude Voronoff”.

Após a morte de Sergei em 1953, D. Gertie casou-se imediatamente com Gil José Queiroz, o conde da Foz, que adquirira a Quinta de S. António ao seu pai, o Marquês da Foz. Dois anos depois, D. Gertie procedeu a uma reabilitação completa dos andares superiores para fornecer novos quartos e banheiros decorados com azulejos pintados à mão na França no estilo Art Déco. Dos palácios da Foz em Lisboa e Grimaldi no Mónaco foram trazidos os tesouros que eu tinha inventariado e a quinta passou a ser conhecida como Quinta do Marquês e palco do grande senão particularmente bom da Sociedade Portuguesa. António de Oliveira Salazar aí almoçou três vezes (sempre precedido por um séquito da PIDE) e outros notáveis ​​eram membros da família do Espírito Santo, dos Condes de Cabral, da família de Mendia e de um círculo de parentes aristocráticos cuja língua franca era o francês em vez de português.

Este apogeu social chegou ao fim com a morte coincidente do Marquês e da revolução de 1974. Após um período de solidão e declínio financeiro D. Gertie escolheu como terceiro marido António Ramada Curto que me foi apresentado como um austero empresário com interesses em armamentos. Ele estava ligado ao magnata russo-americano Armand Hammer e ambos teriam usado helicópteros Alouette para visitar a viúva.

Mas António morreu em 1987 levando Gertie a desistir das suas ideias de se mudar para a Califórnia. Depois disso, ela levou uma vida solitária no seu “castelo” assistida apenas pela sua fiel governanta e um enorme cão lobo preto que dormia ao lado da sua cama e onde mantinha uma Mauser carregada – a sua única segurança contra intrusos embora um bando de gansos atuasse como sentinelas nos jardins.

Após a morte de D. Gertie, em 1993, o que restou dos seus “tesouros” foram leiloados em Lisboa para pagar aos credores e a propriedade caiu nas mãos do grupo bancário BPI. Em 1997 o PDM de Torres Novas declarou o imóvel como monumento de interesse nacional.

Uma visita virtual à propriedade pode ser feita através da visualização deste vídeo

Tomar, 23 de Abril de 2024

QOSHE - Um conto de Dona Gertie e a sua Quinta do Marquês - Roberto Cavaleiro
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Um conto de Dona Gertie e a sua Quinta do Marquês

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24.04.2024

Foi em 1985 que fiz a primeira de várias visitas à Quinta da Torre de Santo António situada perto de Torres Novas. Naquela época, era propriedade da Sra. Gertrude Ramada Curto que preferiu ser tratada como “Dona Gertie”. “Pretendo me mudar para a Califórnia e desejo vender o meu palacete e tudo o que está dentro dele”, disse-me ela ao dar instruções para a minha imobiliária agir como agente exclusivo de vendas internacionais. Como o “tudo” era composto por um vasto conjunto de quadros, porcelanas, móveis e uma biblioteca de raras primeiras edições, foram necessários vários dias para fazer um inventário e, uma inovação na época, fazer uma gravação em vídeo do interior do castelo e da capela, adega, armazéns, jardins paisagísticos e vinhas de uma propriedade com sessenta e cinco hectares. Este vídeo e inventário foram exibidos na exposição Money86 em Hong Kong e copiados para famílias nobres, oligarcas e “nouveau riche” em muitos países.

Dona Gertie foi uma aristocrata........

© Jornal SOL


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