Não sei se por causa das minhas origens ou simplesmente da minha natureza, há em mim algo, muito forte, que me liga a árvores, a plantas, a flores, a animais, a espaços verdes ou amarelos e amplos ou exíguos, a serras mais ou menos elevadas, de onde as neblinas se descolam e evolam pelos céus, a pedras, pequenas ou pedregulhos, espalhadas ou juntinhas e a regatos e fontes que jorram espontaneamente. E, ainda, a todos os bicharocos (expressão de afeição e não de desafeto) que povoam estes espaços e todos os outros, se os deixarem.

Amo a natureza e tudinho o que ela nos oferece. Pelo menos eu sinto como uma oferta, uma dádiva, tudo o que ela nos dá e temos, ali, à mão de semear. Amo a liberdade e as teias de complexidade entre todos os elementos e seres que a fazem, a natureza. É isso que ela é: simplicidade e complexidade, dádiva e entrega, convivialidade, respeito e empatia. Um exemplo para os homens e mulheres e para a sua convivência e sociabilidade. Além de referência para a aprendizagem do ser, a natureza é, também, acolhimento e aconchego, por múltiplas razões.

Daí que me sinta triste, às vezes até um pouco enraivecida (não consigo ficar indiferente como me exorta Ricardo Reis), por verificar que muitos dos “nossos” olivais, hoje, mais não são do que exércitos, um pouco hirtos, como os soldados de cabelo à máquina zero ou à escovinha, todos em fila, muito direitinhos, numa disciplina mecânica.

Quando percorro algumas estradas não posso deixar de gostar do verde, intensivo extensivo que se estende, pela esquerda e pela direita, até ao horizonte que toca o céu. Porém, invade-me uma espécie de angústia, sinto um aperto no coração, porque me parece que todas aquelas árvores, que ali estão dispostas, são prisioneiras, não da terra que lhes alimenta as raízes, mas de uma regra qualquer que determina a sua existência, não simples e natural, mas produtiva. Se produzir, viverá. Se não produzir, não viverá. Viverá apenas enquanto produzir. Coitadas das oliveiras. Já devem ter pensado que, afinal, só existem enquanto não tiverem existência. Que bom seria poderem ver os seus ramos a crescerem, a tocarem-se, a serem admiradas pelos seus troncos grossos e rugosos, efeito da sua vida natural, persistente e resistente e do tempo que neles se grava.

E agora, para seu, e meu, grande desgosto, ainda resolveram cortar todas as árvores vizinhas e os arbustos que a elas se encostavam, para substituírem essas seivas naturais, esses purificadores do ar, esses catalisadores ambientais, por plantações metaliformes, de pernas finas, rijas e frias, e igualmente hirtas, furando a terra, cobertas de placas de metal e vidro, ou lá o que é, que projetam um brilho metálico longo, até onde a vista alcança, mas que nada tem de colorido do arco-íris, nem das transparências brilhantes das gotas de orvalho que antes humedeciam e suavizavam as folhas.

Sim, estou a falar das extensas plantações intensivas de painéis solares que se atravessam nos campos e no nosso campo de visão, que nos ferem vista e alma. Como é possível matarem-se árvores que libertam oxigénio, que consomem dióxido de carbono, que podem aliviar o sofrimento a este nosso planeta moribundo, em nome, precisamente, da produção de uma energia limpa, pouco ou nada poluidora? Como é possível dar-se lugar a esta flora artificial, monocromática, cinzenta, destruindo-se a matizada e vivificada flora e sem a qual, definitivamente, não sobreviveremos? Talvez já estejamos todos mortos e ainda não o percebemos. Talvez nós já tenhamos sido transformados também em seres metalinos, arregimentados, mas cultivam-nos a ilusão de que somos gente, gente de carne e osso, pessoas, com opções e livres. É uma boa ilusão, já que cultiva a aceitação e a não questionação, antefaces da insatisfação humana.

Será que os propósitos que dizem servir estes mundos do metal não poderiam, pelo menos, respeitar a nossa mãe flora e ficar subordinados ao seu direito de usucapião?

Antevejo, daqui a meia dúzia de anos, amontoados de ferrugem, estilhaços estéreis de vidros e metal semeados pelas terras, ao lado de uma velhice prematura das oliveiras e ausência de passarinhos e lagartixas e de todos os restantes companheiros, vítimas desta alienação destravada do homem, que conduz à autodestruição em nome da sobrevivência.

Que é preciso fazer alguma coisa, é. Pela natureza. Pelo ambiente. Por nós. É preciso. Mas seguir caminhos ínvios não me parece ser o melhor para se chegar ao que é preciso.


Não sei se por causa das minhas origens ou simplesmente da minha natureza, há em mim algo, muito forte, que me liga a árvores, a plantas, a flores, a animais, a espaços verdes ou amarelos e amplos ou exíguos, a serras mais ou menos elevadas, de onde as neblinas se descolam e evolam pelos céus, a pedras, pequenas ou pedregulhos, espalhadas ou juntinhas e a regatos e fontes que jorram espontaneamente. E, ainda, a todos os bicharocos (expressão de afeição e não de desafeto) que povoam estes espaços e todos os outros, se os deixarem.

Amo a natureza e tudinho o que ela nos oferece. Pelo menos eu sinto como uma oferta, uma dádiva, tudo o que ela nos dá e temos, ali, à mão de semear. Amo a liberdade e as teias de complexidade entre todos os elementos e seres que a fazem, a natureza. É isso que ela é: simplicidade e complexidade, dádiva e entrega, convivialidade, respeito e empatia. Um exemplo para os homens e mulheres e para a sua convivência e sociabilidade. Além de referência para a aprendizagem do ser, a natureza é, também, acolhimento e aconchego, por múltiplas razões.

Daí que me sinta triste, às vezes até um pouco enraivecida (não consigo ficar indiferente como me exorta Ricardo Reis), por verificar que muitos dos “nossos” olivais, hoje, mais não são do que exércitos, um pouco hirtos, como os soldados de cabelo à máquina zero ou à escovinha, todos em fila, muito direitinhos, numa disciplina mecânica.

Quando percorro algumas estradas não posso deixar de gostar do verde, intensivo extensivo que se estende, pela esquerda e pela direita, até ao horizonte que toca o céu. Porém, invade-me uma espécie de angústia, sinto um aperto no coração, porque me parece que todas aquelas árvores, que ali estão dispostas, são prisioneiras, não da terra que lhes alimenta as raízes, mas de uma regra qualquer que determina a sua existência, não simples e natural, mas produtiva. Se produzir, viverá. Se não produzir, não viverá. Viverá apenas enquanto produzir. Coitadas das oliveiras. Já devem ter pensado que, afinal, só existem enquanto não tiverem existência. Que bom seria poderem ver os seus ramos a crescerem, a tocarem-se, a serem admiradas pelos seus troncos grossos e rugosos, efeito da sua vida natural, persistente e resistente e do tempo que neles se grava.

E agora, para seu, e meu, grande desgosto, ainda resolveram cortar todas as árvores vizinhas e os arbustos que a elas se encostavam, para substituírem essas seivas naturais, esses purificadores do ar, esses catalisadores ambientais, por plantações metaliformes, de pernas finas, rijas e frias, e igualmente hirtas, furando a terra, cobertas de placas de metal e vidro, ou lá o que é, que projetam um brilho metálico longo, até onde a vista alcança, mas que nada tem de colorido do arco-íris, nem das transparências brilhantes das gotas de orvalho que antes humedeciam e suavizavam as folhas.

Sim, estou a falar das extensas plantações intensivas de painéis solares que se atravessam nos campos e no nosso campo de visão, que nos ferem vista e alma. Como é possível matarem-se árvores que libertam oxigénio, que consomem dióxido de carbono, que podem aliviar o sofrimento a este nosso planeta moribundo, em nome, precisamente, da produção de uma energia limpa, pouco ou nada poluidora? Como é possível dar-se lugar a esta flora artificial, monocromática, cinzenta, destruindo-se a matizada e vivificada flora e sem a qual, definitivamente, não sobreviveremos? Talvez já estejamos todos mortos e ainda não o percebemos. Talvez nós já tenhamos sido transformados também em seres metalinos, arregimentados, mas cultivam-nos a ilusão de que somos gente, gente de carne e osso, pessoas, com opções e livres. É uma boa ilusão, já que cultiva a aceitação e a não questionação, antefaces da insatisfação humana.

Será que os propósitos que dizem servir estes mundos do metal não poderiam, pelo menos, respeitar a nossa mãe flora e ficar subordinados ao seu direito de usucapião?

Antevejo, daqui a meia dúzia de anos, amontoados de ferrugem, estilhaços estéreis de vidros e metal semeados pelas terras, ao lado de uma velhice prematura das oliveiras e ausência de passarinhos e lagartixas e de todos os restantes companheiros, vítimas desta alienação destravada do homem, que conduz à autodestruição em nome da sobrevivência.

Que é preciso fazer alguma coisa, é. Pela natureza. Pelo ambiente. Por nós. É preciso. Mas seguir caminhos ínvios não me parece ser o melhor para se chegar ao que é preciso.


Comentava João Carlos Lopes , no último Jornal Torrejano, de 16 de Fevereiro, sob o título Este Mundo e o Outro, partindo, quer do pessimismo nostálgico do Jorge Carreira Maia (Este não é o meu mundo), quer da importância da memória, em Maria Augusta Torcato, para resistir «à névoa que provoca o esquecimento e cegueira», quer «na militância política e cívica sempre empenhada», da minha autoria, num país do salve-se quem puder e do deixa andar, sempre à espera dum messias que resolva, por qualquer gesto milagreiro, a sua raiva abafada de nunca ser outra coisa que a imagem crónica de pobreza.
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A crise das democracias liberais, que tanto e a tantos atormenta, pode residir num conflito entre a natureza humana e o regime democrático-liberal. Num livro de 2008, Democratic Authority – a philosophical framework, o filósofo David.
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Existe um paternalismo naqueles que desenvolvem uma compreensão do mundo extensiva que muitas vezes não lhes permite ver os outros, quiçá a si próprios, como realmente são. A opinião pública tem sido marcada por reflexões sobre a falta de memória histórica como justificação do novo mundo intolerante que está para vir, adivinho eu, devido à intenção de voto que se espera no CHEGA.
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Escreve Jorge Carreira Maia, nesta edição, ter a certeza de que este mundo já não é o seu e que o mundo a que chamou seu acabou. “Não sei bem qual foi a hora em que as coisas mudaram, em que a megera da História me deixou para trás”, vai ele dizendo na suas palavras sempre lúcidas e brilhantes, concluindo que “vivemos já num mundo tenebroso, onde os clowns ainda não estão no poder, mas este já espera por eles, para que a História satisfaça a sua insaciável sede de sangue e miséria”.
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O dia 5 de Fevereiro de 2032, em que o Francisco Falcão fez 82 anos - aos quais nunca julgara ir chegar -, nasceu ainda mais frio do que os anteriores e este Inverno parecia ser nisso ainda pior que os que o antecederam, o que contribuiu para que cada vez com mais frequência ele se fosse deixando ficar na cama até mais tarde e neste dia festivo só de lá iria sair depois do meio-dia.
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Há dias atrás, no âmbito da pré-campanha eleitoral, visitei o lugar onde passei a maior parte da minha vida (47 anos), as oficinas da CP no Entroncamento.

Não que tivesse saudades, mas o espaço, o cheiro e acima de tudo a oportunidade de rever alguns companheiros que ainda por lá se encontram, que ainda lá continuam a vender a sua força de trabalho, foi uma boa recompensa.
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Quando me aborreço, mudo de canal. Vou seguindo os debates eleitorais televisivos, mas, saturado, opto por um filme no SYFY, onde a Humanidade tenta salvar com seus heróis americanizados da Marvel o planeta Terra, em vez de gramar as notas e as opiniões dos comentadores profissionais e partidocratas que se esfalfam na crítica ou no elogio do seu candidato de estimação.
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“Quando somos crianças, perguntamos sempre porquê, mas os adultos esquecem-se de continuar a perguntar. Limitam-se a aceitar.”

Colum McCann in Apeirogon

Na citação acima podemos encontrar a explicação para a passividade face aos desastres ambientais revelada pelas gerações menos jovens.
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QOSHE - Plantação intensiva: do corte à escovinha e tudo em fila aos horizontes metalificados - maria augusta torcato - Maria Augusta Torcato
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Plantação intensiva: do corte à escovinha e tudo em fila aos horizontes metalificados - maria augusta torcato

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08.03.2024

Não sei se por causa das minhas origens ou simplesmente da minha natureza, há em mim algo, muito forte, que me liga a árvores, a plantas, a flores, a animais, a espaços verdes ou amarelos e amplos ou exíguos, a serras mais ou menos elevadas, de onde as neblinas se descolam e evolam pelos céus, a pedras, pequenas ou pedregulhos, espalhadas ou juntinhas e a regatos e fontes que jorram espontaneamente. E, ainda, a todos os bicharocos (expressão de afeição e não de desafeto) que povoam estes espaços e todos os outros, se os deixarem.

Amo a natureza e tudinho o que ela nos oferece. Pelo menos eu sinto como uma oferta, uma dádiva, tudo o que ela nos dá e temos, ali, à mão de semear. Amo a liberdade e as teias de complexidade entre todos os elementos e seres que a fazem, a natureza. É isso que ela é: simplicidade e complexidade, dádiva e entrega, convivialidade, respeito e empatia. Um exemplo para os homens e mulheres e para a sua convivência e sociabilidade. Além de referência para a aprendizagem do ser, a natureza é, também, acolhimento e aconchego, por múltiplas razões.

Daí que me sinta triste, às vezes até um pouco enraivecida (não consigo ficar indiferente como me exorta Ricardo Reis), por verificar que muitos dos “nossos” olivais, hoje, mais não são do que exércitos, um pouco hirtos, como os soldados de cabelo à máquina zero ou à escovinha, todos em fila, muito direitinhos, numa disciplina mecânica.

Quando percorro algumas estradas não posso deixar de gostar do verde, intensivo extensivo que se estende, pela esquerda e pela direita, até ao horizonte que toca o céu. Porém, invade-me uma espécie de angústia, sinto um aperto no coração, porque me parece que todas aquelas árvores, que ali estão dispostas, são prisioneiras, não da terra que lhes alimenta as raízes, mas de uma regra qualquer que determina a sua existência, não simples e natural, mas produtiva. Se produzir, viverá. Se não produzir, não viverá. Viverá apenas enquanto produzir. Coitadas das oliveiras. Já devem ter pensado que, afinal, só existem enquanto não tiverem existência. Que bom seria poderem ver os seus ramos a crescerem, a tocarem-se, a serem admiradas pelos seus troncos grossos e rugosos, efeito da sua vida natural, persistente e resistente e do tempo que neles se grava.

E agora, para seu, e meu, grande desgosto, ainda resolveram cortar todas as árvores vizinhas e os arbustos que a elas se encostavam, para substituírem essas seivas naturais, esses purificadores do ar, esses catalisadores ambientais, por plantações metaliformes, de pernas finas, rijas e frias, e igualmente hirtas, furando a terra, cobertas de placas de metal e vidro, ou lá o que é, que projetam um brilho metálico longo, até onde a vista alcança, mas que nada tem de colorido do arco-íris, nem das transparências brilhantes das gotas de orvalho que antes humedeciam e suavizavam as folhas.

Sim, estou a falar das extensas plantações intensivas de painéis solares que se atravessam nos campos e no nosso campo de visão, que nos ferem vista e alma. Como é possível matarem-se árvores que libertam oxigénio, que consomem dióxido de carbono, que podem aliviar o........

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