Existe um paternalismo naqueles que desenvolvem uma compreensão do mundo extensiva que muitas vezes não lhes permite ver os outros, quiçá a si próprios, como realmente são. A opinião pública tem sido marcada por reflexões sobre a falta de memória histórica como justificação do novo mundo intolerante que está para vir, adivinho eu, devido à intenção de voto que se espera no CHEGA.

É curioso estas preocupações virem quase sempre de indivíduos que apresentam uma fé imensa num sistema político que, há data da sua implementação, tinha não só provas a priori mas também a posteriori que de democrático pouco ou nada tinha. Falo do problema da abstenção pela diluição do poder do indivíduo, do bipartidarismo resultante do voto útil, da falta de representatividade do cidadão porque os membros das listas não são sequer representativos dos militantes e da problemática coexistência com uma sociedade industrial que dá meios exponencialmente maiores a uns em detrimento dos outros, que somos quase todos. Também é sempre dada muito pouca atenção para a capacidade que as sociedades mais tolerantes têm de ser intolerantes com todo o território que não esteja munido de armas nucleares, o verdadeiro motivo da paz que ainda temos no mundo.

Uma das maiores frustrações de quem tem comentado a nova tendência no sufrágio é a demagogia e o discurso de ódio usados por André Ventura. Talvez o que estes também esqueçam é que a estratégia de prometer tudo para não cumprir nada e dividir para conquistar é, como se diz na minha terra, “mais velha que o largar da ameixa”. Interromper o outro já era quase sempre a estratégia óptima daqueles que nada têm de relevante ou diferente para dizer. Todos mantêm os mesmos chavões: mais saúde, mais habitação, mais emprego… Menos só para a corrupção.

Será então que as pessoas votam na “intolerância” porque não têm memória histórica, ou porque a memória que têm é dos tolerantes que não os representavam devidamente? Será que até há uma memória bem representativa da realidade e que por isso queira, de certa forma, a eutanásia da democracia?

A verdade é que não há futuro em nenhum dos programas eleitorais dos partidos com assento parlamentar, desde os democráticos até aos que nem fingem ser, por isso não censuro aqueles que queiram uma viragem no guião para o que resta do espectáculo. Nenhum programa olha para as alterações climáticas com a seriedade que deveria ter, tal como a nova acção da Climaximo assim tentou denunciar. E enquanto os partidos de esquerda e direita lutam por ser os melhores da sua estirpe, debatendo percentagens, vírgulas e os colégios que os filhos frequentam, esquecem-se que nenhum é bom o suficiente para ser uma aposta num futuro digno nesta terra. Quase todos são a favor da permanência na NATO, em grande parte culpada por todos os conflitos militares deste século e na União Europeia que deixa morrer no mar e paga a outros para prender nas suas fronteiras os desalojados das guerras em que os seus membros participam. “Paz, pão, povo e liberdade”, em quase todas as variantes partidárias, podem ser traduzidas para “Morte longe da vista não chega ao coração, comerão a carne se não a tiverem de arrancar dos ossos”. E assim vai bailando o Ocidente pelo tempo, desviando-se da ocasional emulação de protesto.

Estas cantigas têm sido escritas sempre connosco na ideia e realizadas connosco na bancada. Mas quem somos nós? Os pensionistas? Os amargurados? Os capitalistas? Alguém há de ser. Por mais bolhas que possam haver com as novas redes sociais, estas são ainda recentes o suficiente para não serem um factor preponderante na formação da nossa agência colectiva. Todos nós vimos imagens da terra de ninguém, da morte na lama, das bombas sobre o Japão, das câmaras de Auschwitz, da corrida a mais bombas, da miséria do Estado Novo, da escravatura nas colónias, da aterragem na Lua, dos cravos de Abril, da entrada na CEE, da queda do Muro, da queda do bloco de Leste, da pilhagem dos membros, do buraco no ozono, da Guerra ao Terror, das calotas a derreter, dos rios a secar, do vírus que ainda tossimos, da pilhagem do Afeganistão, da guerra na Ucrânia, da morte na Palestina…

Regressados ao presente e de memória viva, aqui estamos nós: capazes de tudo e incapazes de nada. E aqui está cada um de nós: incapaz de tudo e capaz de nada. De voto na mão, muitos desconectar-se-ão da sua conta Netflix, apagarão as luzes de sua casa, ligarão o alarme, entrarão no seu automóvel particular para se deslocar às urnas onde finalmente, com uma esferográfica plastificada, riscarão um quadrado. Qual quadrado, pergunta? Então não se lembra? Não viu o mesmo que eu? Traga mas é a carne que eu bem sei que a separaram dos ossos.

Existe um paternalismo naqueles que desenvolvem uma compreensão do mundo extensiva que muitas vezes não lhes permite ver os outros, quiçá a si próprios, como realmente são. A opinião pública tem sido marcada por reflexões sobre a falta de memória histórica como justificação do novo mundo intolerante que está para vir, adivinho eu, devido à intenção de voto que se espera no CHEGA.

É curioso estas preocupações virem quase sempre de indivíduos que apresentam uma fé imensa num sistema político que, há data da sua implementação, tinha não só provas a priori mas também a posteriori que de democrático pouco ou nada tinha. Falo do problema da abstenção pela diluição do poder do indivíduo, do bipartidarismo resultante do voto útil, da falta de representatividade do cidadão porque os membros das listas não são sequer representativos dos militantes e da problemática coexistência com uma sociedade industrial que dá meios exponencialmente maiores a uns em detrimento dos outros, que somos quase todos. Também é sempre dada muito pouca atenção para a capacidade que as sociedades mais tolerantes têm de ser intolerantes com todo o território que não esteja munido de armas nucleares, o verdadeiro motivo da paz que ainda temos no mundo.

Uma das maiores frustrações de quem tem comentado a nova tendência no sufrágio é a demagogia e o discurso de ódio usados por André Ventura. Talvez o que estes também esqueçam é que a estratégia de prometer tudo para não cumprir nada e dividir para conquistar é, como se diz na minha terra, “mais velha que o largar da ameixa”. Interromper o outro já era quase sempre a estratégia óptima daqueles que nada têm de relevante ou diferente para dizer. Todos mantêm os mesmos chavões: mais saúde, mais habitação, mais emprego… Menos só para a corrupção.

Será então que as pessoas votam na “intolerância” porque não têm memória histórica, ou porque a memória que têm é dos tolerantes que não os representavam devidamente? Será que até há uma memória bem representativa da realidade e que por isso queira, de certa forma, a eutanásia da democracia?

A verdade é que não há futuro em nenhum dos programas eleitorais dos partidos com assento parlamentar, desde os democráticos até aos que nem fingem ser, por isso não censuro aqueles que queiram uma viragem no guião para o que resta do espectáculo. Nenhum programa olha para as alterações climáticas com a seriedade que deveria ter, tal como a nova acção da Climaximo assim tentou denunciar. E enquanto os partidos de esquerda e direita lutam por ser os melhores da sua estirpe, debatendo percentagens, vírgulas e os colégios que os filhos frequentam, esquecem-se que nenhum é bom o suficiente para ser uma aposta num futuro digno nesta terra. Quase todos são a favor da permanência na NATO, em grande parte culpada por todos os conflitos militares deste século e na União Europeia que deixa morrer no mar e paga a outros para prender nas suas fronteiras os desalojados das guerras em que os seus membros participam. “Paz, pão, povo e liberdade”, em quase todas as variantes partidárias, podem ser traduzidas para “Morte longe da vista não chega ao coração, comerão a carne se não a tiverem de arrancar dos ossos”. E assim vai bailando o Ocidente pelo tempo, desviando-se da ocasional emulação de protesto.

Estas cantigas têm sido escritas sempre connosco na ideia e realizadas connosco na bancada. Mas quem somos nós? Os pensionistas? Os amargurados? Os capitalistas? Alguém há de ser. Por mais bolhas que possam haver com as novas redes sociais, estas são ainda recentes o suficiente para não serem um factor preponderante na formação da nossa agência colectiva. Todos nós vimos imagens da terra de ninguém, da morte na lama, das bombas sobre o Japão, das câmaras de Auschwitz, da corrida a mais bombas, da miséria do Estado Novo, da escravatura nas colónias, da aterragem na Lua, dos cravos de Abril, da entrada na CEE, da queda do Muro, da queda do bloco de Leste, da pilhagem dos membros, do buraco no ozono, da Guerra ao Terror, das calotas a derreter, dos rios a secar, do vírus que ainda tossimos, da pilhagem do Afeganistão, da guerra na Ucrânia, da morte na Palestina…

Regressados ao presente e de memória viva, aqui estamos nós: capazes de tudo e incapazes de nada. E aqui está cada um de nós: incapaz de tudo e capaz de nada. De voto na mão, muitos desconectar-se-ão da sua conta Netflix, apagarão as luzes de sua casa, ligarão o alarme, entrarão no seu automóvel particular para se deslocar às urnas onde finalmente, com uma esferográfica plastificada, riscarão um quadrado. Qual quadrado, pergunta? Então não se lembra? Não viu o mesmo que eu? Traga mas é a carne que eu bem sei que a separaram dos ossos.

Comentava João Carlos Lopes , no último Jornal Torrejano, de 16 de Fevereiro, sob o título Este Mundo e o Outro, partindo, quer do pessimismo nostálgico do Jorge Carreira Maia (Este não é o meu mundo), quer da importância da memória, em Maria Augusta Torcato, para resistir «à névoa que provoca o esquecimento e cegueira», quer «na militância política e cívica sempre empenhada», da minha autoria, num país do salve-se quem puder e do deixa andar, sempre à espera dum messias que resolva, por qualquer gesto milagreiro, a sua raiva abafada de nunca ser outra coisa que a imagem crónica de pobreza.
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Não sei se por causa das minhas origens ou simplesmente da minha natureza, há em mim algo, muito forte, que me liga a árvores, a plantas, a flores, a animais, a espaços verdes ou amarelos e amplos ou exíguos, a serras mais ou menos elevadas, de onde as neblinas se descolam e evolam pelos céus, a pedras, pequenas ou pedregulhos, espalhadas ou juntinhas e a regatos e fontes que jorram espontaneamente.
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A crise das democracias liberais, que tanto e a tantos atormenta, pode residir num conflito entre a natureza humana e o regime democrático-liberal. Num livro de 2008, Democratic Authority – a philosophical framework, o filósofo David.
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Escreve Jorge Carreira Maia, nesta edição, ter a certeza de que este mundo já não é o seu e que o mundo a que chamou seu acabou. “Não sei bem qual foi a hora em que as coisas mudaram, em que a megera da História me deixou para trás”, vai ele dizendo na suas palavras sempre lúcidas e brilhantes, concluindo que “vivemos já num mundo tenebroso, onde os clowns ainda não estão no poder, mas este já espera por eles, para que a História satisfaça a sua insaciável sede de sangue e miséria”.
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O dia 5 de Fevereiro de 2032, em que o Francisco Falcão fez 82 anos - aos quais nunca julgara ir chegar -, nasceu ainda mais frio do que os anteriores e este Inverno parecia ser nisso ainda pior que os que o antecederam, o que contribuiu para que cada vez com mais frequência ele se fosse deixando ficar na cama até mais tarde e neste dia festivo só de lá iria sair depois do meio-dia.
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Há dias atrás, no âmbito da pré-campanha eleitoral, visitei o lugar onde passei a maior parte da minha vida (47 anos), as oficinas da CP no Entroncamento.

Não que tivesse saudades, mas o espaço, o cheiro e acima de tudo a oportunidade de rever alguns companheiros que ainda por lá se encontram, que ainda lá continuam a vender a sua força de trabalho, foi uma boa recompensa.
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Quando me aborreço, mudo de canal. Vou seguindo os debates eleitorais televisivos, mas, saturado, opto por um filme no SYFY, onde a Humanidade tenta salvar com seus heróis americanizados da Marvel o planeta Terra, em vez de gramar as notas e as opiniões dos comentadores profissionais e partidocratas que se esfalfam na crítica ou no elogio do seu candidato de estimação.
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“Quando somos crianças, perguntamos sempre porquê, mas os adultos esquecem-se de continuar a perguntar. Limitam-se a aceitar.”

Colum McCann in Apeirogon

Na citação acima podemos encontrar a explicação para a passividade face aos desastres ambientais revelada pelas gerações menos jovens.
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A carne e os ossos - pedro borges ferreira

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08.03.2024

Existe um paternalismo naqueles que desenvolvem uma compreensão do mundo extensiva que muitas vezes não lhes permite ver os outros, quiçá a si próprios, como realmente são. A opinião pública tem sido marcada por reflexões sobre a falta de memória histórica como justificação do novo mundo intolerante que está para vir, adivinho eu, devido à intenção de voto que se espera no CHEGA.

É curioso estas preocupações virem quase sempre de indivíduos que apresentam uma fé imensa num sistema político que, há data da sua implementação, tinha não só provas a priori mas também a posteriori que de democrático pouco ou nada tinha. Falo do problema da abstenção pela diluição do poder do indivíduo, do bipartidarismo resultante do voto útil, da falta de representatividade do cidadão porque os membros das listas não são sequer representativos dos militantes e da problemática coexistência com uma sociedade industrial que dá meios exponencialmente maiores a uns em detrimento dos outros, que somos quase todos. Também é sempre dada muito pouca atenção para a capacidade que as sociedades mais tolerantes têm de ser intolerantes com todo o território que não esteja munido de armas nucleares, o verdadeiro motivo da paz que ainda temos no mundo.

Uma das maiores frustrações de quem tem comentado a nova tendência no sufrágio é a demagogia e o discurso de ódio usados por André Ventura. Talvez o que estes também esqueçam é que a estratégia de prometer tudo para não cumprir nada e dividir para conquistar é, como se diz na minha terra, “mais velha que o largar da ameixa”. Interromper o outro já era quase sempre a estratégia óptima daqueles que nada têm de relevante ou diferente para dizer. Todos mantêm os mesmos chavões: mais saúde, mais habitação, mais emprego… Menos só para a corrupção.

Será então que as pessoas votam na “intolerância” porque não têm memória histórica, ou porque a memória que têm é dos tolerantes que não os representavam devidamente? Será que até há uma memória bem representativa da realidade e que por isso queira, de certa forma, a eutanásia da democracia?

A verdade é que não há futuro em nenhum dos programas eleitorais dos partidos com assento parlamentar, desde os democráticos até aos que nem fingem ser, por isso não censuro aqueles que queiram uma viragem no guião para o que resta do espectáculo. Nenhum programa olha para as alterações climáticas com a seriedade que deveria ter, tal como a nova acção da Climaximo assim tentou denunciar. E enquanto os partidos de esquerda e direita lutam por ser os melhores da sua estirpe, debatendo percentagens, vírgulas e os colégios que os filhos frequentam, esquecem-se que nenhum é bom o suficiente para ser uma aposta num futuro digno nesta terra. Quase todos são a favor da permanência na NATO, em grande parte culpada por todos os conflitos militares deste século e na União Europeia que deixa morrer no mar e paga a outros para prender nas suas fronteiras os desalojados das guerras em que os seus membros participam. “Paz, pão, povo e liberdade”, em quase todas as variantes partidárias, podem ser traduzidas para “Morte longe da vista não chega ao coração, comerão a carne se não a tiverem de arrancar dos ossos”. E assim vai bailando o Ocidente........

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