“Se a Europa for atacada nós nunca vos ajudaremos”. “Já agora, a NATO está morta e nós vamos sair”. Segundo o comissário europeu Thierry Breton, estas foram as palavras de Donald Trump a Ursula von der Leyen em 2020, no Fórum de Davos. Desde então, o presidente norte-americano geriu de forma danosa a resposta à COVID-19 nos EUA, saiu derrotado em novembro, negou tal derrota e encabeçou uma insurreição contra a transferência pacífica de poder. Quatro anos depois da reunião tensa em Davos, a possibilidade de um Trump desenfreado regressar à Casa Branca é bem real. A isto acresce a invasão em grande escala da Rússia à Ucrânia e a torrente de retórica belicista vinda desta contra o Ocidente. Assim, era de esperar que nós, a União Europeia, tivéssemos feito vastos progressos em direção à tão desejada “autonomia estratégica”.

Mas isso não aconteceu, pois não?

Joe Biden foi eleito prometendo a normalidade e os seus aliados europeus correram para revê-la em matérias de defesa. O compromisso do Ocidente para com Kyiv, sempre acompanhado nos discursos pelo maleável “enquanto for necessário”, parece limitar-se a assegurar a sobrevivência deste país e não a sua vitória. A contraofensiva do ano passado cedeu sob o peso das altas expectativas e do baixo apoio material providenciado. Cidades ucranianas continuam sob bombardeamento diário de mísseis, realçando-se a crescente importância do apoio militar do Irão e da Coreia do Norte à agressão russa. Civis ucranianos continuam a morrer de forma gratuita. Apesar de perder aproximadamente mil soldados por dia em ofensivas frustradas, a máquina de guerra russa ameaça esgotar os recursos da Ucrânia e esmorecer a moral euro-atlântica.

A UE, escreve Norbert Röttgen para a Foreign Affairs, deve intensificar o envio de jatos F-16, sistemas de defesa antiaéreos como mísseis Patriot e IRIS-T e, sobretudo, mísseis de cruzeiro de médio e longo alcance, capazes de atingir alvos russos como cadeias logísticas ou depósitos de munições dentro e fora do território ocupado. Sublinha-se aqui a hesitação alemã em enviar mísseis Taurus, sendo alvo de críticas externas e internas, como o ex-presidente Joachim Gauck. Estivesse a Ucrânia reforçada com este tipo de armamento em número suficiente, e seria capaz de travar o terrorismo russo nas suas cidades e tornar a presença do ocupante na Crimeia insustentável – os ataques à Ponte de Kerch, o bombardeamento da base da Frota do Mar Negro em Sebastopol e o afundar do Novocherkassk são exemplos de que este último não é um objetivo descabido. Por outro lado, os arsenais europeus arriscam-se a não corresponder a futuras necessidades operacionais. O aprovisionamento parco de mísseis por Estados europeus como a França, a Alemanha e a Itália nas décadas anteriores, argumenta Fabian Hoffmann em War on the Rocks, ameaça o envio futuro destes sistemas à Ucrânia. Em resposta, a produção europeia de mísseis deve pautar por uma maior integração a nível nacional e desenvolver a próxima geração de armas de longo alcance.

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Como expectável, quanto mais próximo da Rússia, mais um Estado europeu se comprometerá em travar Moscovo. Entre estes, a Estónia destinou mais de um terço do seu orçamento de defesa anual para Kyiv. No white paper publicado no mês passado, Tallinn frisou o óbvio: a guerra na Ucrânia é uma batalha de vontades. É nesta frente que o Ocidente ameaça ceder primeiro. Um novo pacote de apoio financeiro de 30 mil milhões de euros teima em avançar devido à Hungria de Viktor Orbán, continuando o poder decisório da União refém da chantagem deste Estado. O risco da alta abstenção nas próximas europeias acarreta um possível aumento de partidos pró-Kremlin no Parlamento Europeu. Nos Países Baixos, a vitória de Geert Wilders ainda não materializou nenhum governo. Na Áustria, o FPÖ parece ter recuperado dos danos do escândalo de Ibiza. Por último, relembro de novo, o ex-presidente norte-americano que tentou ilegalmente manter-se no poder depois de perder as eleições, que está mergulhado em escândalos e processos jurídicos, que promete ser “um ditador”, tem uma hipótese não pequena de regressar.

O papel dos Estados Unidos como garante da defesa da Europa não é um dado adquirido. Mesmo assegurando-se mais quatro anos de Biden, ele próprio minado por timidez e pelo bloqueio congressional a fundos à Ucrânia, o agravar de tensões no Mar do Sul da China e no Médio Oriente colocarão as atenções de Washington longe do continente europeu. Muito se tem escrito sobre uma União Europeia geopoliticamente capaz de impor a sua vontade na ordem internacional do futuro, mas tal projeto só se materializará com a vitória militar da Ucrânia na Rússia, com o envio de fundos russos congelados pelo Ocidente para Kyiv, com o compromisso na recuperação deste país e a sua plena integração na família europeia. Acima de tudo, é necessário que as lideranças europeias percebam de forma clara a futilidade de ansiar por negociações com o Kremlin. A abertura de negociações de adesão da Ucrânia à UE é louvável, mas, segundo Mark Leonard no Project Syndicate, sem uma estratégia coerente, o futuro do continente continuará nas mãos de terceiros.

É o nosso medo de responder à Rússia que convida a mais atos terroristas deste Estado. Se o medo prevalecer e o apoio à Ucrânia secar, a mensagem que se transmite aos aliados do Ocidente é: “não vale a pena pedir-nos auxílio, mais cedo ou mais tarde vamos fartar-nos e atirar-vos aos lobos”. Se, depois de arrasar a Ucrânia a seu bel-prazer, Vladimir Putin decidir testar o Artigo V, estaremos nós, os europeus, prontos para uma rejeição dos Estados Unidos? Não é a derrota russa que devemos temer, é a sua vitória.

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Guerra na Ucrânia e batalha de vontades na Europa

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18.01.2024

“Se a Europa for atacada nós nunca vos ajudaremos”. “Já agora, a NATO está morta e nós vamos sair”. Segundo o comissário europeu Thierry Breton, estas foram as palavras de Donald Trump a Ursula von der Leyen em 2020, no Fórum de Davos. Desde então, o presidente norte-americano geriu de forma danosa a resposta à COVID-19 nos EUA, saiu derrotado em novembro, negou tal derrota e encabeçou uma insurreição contra a transferência pacífica de poder. Quatro anos depois da reunião tensa em Davos, a possibilidade de um Trump desenfreado regressar à Casa Branca é bem real. A isto acresce a invasão em grande escala da Rússia à Ucrânia e a torrente de retórica belicista vinda desta contra o Ocidente. Assim, era de esperar que nós, a União Europeia, tivéssemos feito vastos progressos em direção à tão desejada “autonomia estratégica”.

Mas isso não aconteceu, pois não?

Joe Biden foi eleito prometendo a normalidade e os seus aliados europeus correram para revê-la em matérias de defesa. O compromisso do Ocidente para com Kyiv, sempre acompanhado nos discursos pelo maleável “enquanto for necessário”, parece limitar-se a assegurar a sobrevivência deste país e não a sua vitória. A contraofensiva do ano passado cedeu sob o peso das altas expectativas e do baixo apoio material providenciado. Cidades ucranianas continuam sob bombardeamento diário de mísseis, realçando-se a crescente importância do apoio militar do Irão e da Coreia do Norte à........

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