O “nazi-fascismo de Hitler-Musssolini-Franco e Salazar” era um dos estribilhos com que o Dr. Álvaro Cunhal cadenciava o discurso na sua famosa “cassette”. Era um truque relativamente rasteiro, uma amálgama que ficaria mal a alguém com a inteligência do Dr. Cunhal, não estivesse ele mais do que consciente da deliberada manipulação táctica a que recorria, e não fosse o então Secretário-Geral do PCP um político a quem se toleravam a demagogia, a propaganda e as “inverdades” populistas.

Na passada semana, com o aquecimento emocional do cinquentenário do 25 de Abril, assistimos a algumas dessas amálgamas, com a agravante de serem quase sempre repetidas como verdades absolutas, mais por ignorância, simplismo e ânsia de correcção política do que por táctica. Mas já passaram e não vou demorar-me nelas.

Vou falar antes de outro 25 de Abril. Um 25 de Abril que também deu lugar a uma manipulação grosseira com tanto de abusiva como de ousada –mas livre de polígrafo, dado o comprovado progressismo e a certificada fidedignidade do órgão de “informação de referência” que a publica.

O 25 de Abril de que falo é o de 1945, o dia da insurreição antifascista no Norte de Itália; o órgão de comunicação a que me refiro é o jornal de referência La Repubblica; e o cronista e director em causa é Maurizio Molinari que em “25 Aprile: la necessitá della memoria” avança com a velha táctica da amálgama para atacar a direita italiana no poder e espantar o “perigo fascista” que paira sobre a Europa.

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Em 25 de Julho de 1943, depois do desembarque americano na Sicília, na reunião do Grande Conselho Fascista (uma espécie de Bureau político do Partido Nacional Fascista), Mussolini, para sua surpresa, foi posto em minoria por uma moção liderada por Dino Grandi. Na sequência, foi demitido pelo rei Vittorio Emanuele III e posto sob prisão em local desconhecido. O local era o hotel Grand Sasso, de onde, em Setembro, o resgatou um grupo de paraquedistas alemães, chefiado pelo major Harald Mors, mas de que Otto Skorzeny reclamou a fama.

Dali, Mussolini seguiria para Munique para se encontrar com Hitler e mais tarde fundaria, com os quadros fascistas que lhe tinham ficado fiéis, a República Social Italiana, que viveria praticamente sob tutela alemã. Em 28 de Abril de 1945, o Duce e Claretta Petacci, juntamente com alguns hierarcas fascistas, seriam mortos, em Dongo, pelos partigiani comunistas, e os seus corpos pendurados pelos pés e expostos em Milão.

No fim da guerra civil, muitos fascistas foram mortos sumariamente pelos partigiani comunistas, invocando um direito de represália pelo domínio fascista no Norte.

A seguir à guerra, os fascistas criaram o MSI, Movimento Social Italiano, de Giorgio Almirante. No MSI houve sempre correntes, mais ou menos polémicas – umas mais nostálgicas e fiéis à tradição fascista, outras mais partidárias do reconhecimento dos novos tempos e da realidade atlântica e democrática. São estas que vão prevalecer, sobretudo a partir da direcção do MSI – Direita Nacional de Gianfranco Fini, que entra num governo de coligação com Berlusconi e com a Lega Nord. Fini depois afasta-se e, em 2012, Giorgia Meloni, vinda da Frente da Juventude do MSI. Vai criar com Ignacio la Russa o novo partido Fratelli d’Italia.

O partido de Meloni é um partido nacionalista que defende a continuação na União Europeia, dentro do respeito pelas fronteiras e pela identidade da Itália. Os Fratelli são conservadores em costumes, identitários em política e defensores da economia de mercado. O partido, que em matéria de política externa se tem identificado activamente com a posição da NATO na guerra Rússia-Ucrânia, mantém os princípios e valores da trilogia “Deus, Pátria, Família”, um lema de Mazzini, depois repetido por Salazar e hoje por Viktor Órban, o inimigo número 1 da alarmada esquerda europeia.

O facto de os partidos ditos de “extrema-direita” ou de “direita radical” – do Rassemblement National à Alternativa pela Alemanha, do Vox ao Chega ou ao Lei e Justiça – serem todos, sem excepção, claramente pelo Estado democrático de direito, parece ser irrelevante, ou é tornado irrelevante para que os “párias da democracia” possam entrar como aterradores fantasmas na farsa do “perigo fascista” que a esquerda não se cansa de reencenar. Talvez por isso, à semelhança do que acontece entre nós, o La Repubblica se desmultiplique em inquéritos à opinião pública. O da edição de dia 25 de Abril é uma sondagem da empresa Nopo que nos assegura que “a Itália está refractária a revisionismos históricos e convencida da necessidade de celebrar o 25 de Abril”. Porém, apesar dos esforços dos inquiridores e redactores de referência, parece que 56% dos italianos, ainda que governados pela coligação de centro-direita Irmãos de Itália, Liga Norte e Força Itália, continuam longe de temer o tão apregoado “regresso do fascismo”.

Para Molinari só podem ser inconscientes ou estar mal informados. Escreve então o director do La Repubblica para os esclarecer e nos esclarecer:

“Mulheres e homens de todas as idades em Teerão, em Hong-Kong, em São Petersburgo, em Budapeste e Varsóvia exprimem a corajosa recusa do exercício de um poder executivo que quer controlar cada cidadão, colocando a todos nós a urgência de estar ao lado deles.”

Pequim, Teerão, São Petersburgo, Budapeste, Varsóvia… para Molinari, vai tudo dar ao mesmo. E a Roma de Meloni, supõe-se, também por lá andará. Hong Kong já foi uma cidade-Estado com alguma autonomia, mas, nos últimos anos, esse estatuto parece comprometido pela China; Teerão é a capital do regime dos Ayatollahs, uma clerocracia autoritária; e São Petersburgo é a Rússia do cesarismo popular de Putin. Pouco importa se Budapeste é uma democracia pluralista, governada por um partido nacional conservador, como era a Polónia do Lei e Justiça. Será que é dos abusos de poder da coligação de centro-esquerda que agora governa a Polónia que Molinari fala quando inclui Varsóvia nos Estados que vigiam os seus cidadãos?

De qualquer modo, é difícil encontrar amálgama intelectual e politicamente mais desonesta do que esta, em véspera de eleições europeias.

Mas tratando-se de um órgão de opinião “de referência”, referenciado pela seriedade, veracidade e qualidade da sua informação, convém não fazer amálgamas, ainda que honestas, com a desinformação desreferenciada que para aí anda a manipular o povo.

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QOSHE - A desinformação de referência - Jaime Nogueira Pinto
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A desinformação de referência

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04.05.2024

O “nazi-fascismo de Hitler-Musssolini-Franco e Salazar” era um dos estribilhos com que o Dr. Álvaro Cunhal cadenciava o discurso na sua famosa “cassette”. Era um truque relativamente rasteiro, uma amálgama que ficaria mal a alguém com a inteligência do Dr. Cunhal, não estivesse ele mais do que consciente da deliberada manipulação táctica a que recorria, e não fosse o então Secretário-Geral do PCP um político a quem se toleravam a demagogia, a propaganda e as “inverdades” populistas.

Na passada semana, com o aquecimento emocional do cinquentenário do 25 de Abril, assistimos a algumas dessas amálgamas, com a agravante de serem quase sempre repetidas como verdades absolutas, mais por ignorância, simplismo e ânsia de correcção política do que por táctica. Mas já passaram e não vou demorar-me nelas.

Vou falar antes de outro 25 de Abril. Um 25 de Abril que também deu lugar a uma manipulação grosseira com tanto de abusiva como de ousada –mas livre de polígrafo, dado o comprovado progressismo e a certificada fidedignidade do órgão de “informação de referência” que a publica.

O 25 de Abril de que falo é o de 1945, o dia da insurreição antifascista no Norte de Itália; o órgão de comunicação a que me refiro é o jornal de referência La Repubblica; e o cronista e director em causa é Maurizio Molinari que em “25 Aprile: la necessitá della memoria” avança com a velha táctica da amálgama para atacar a direita italiana no poder e espantar o “perigo fascista” que paira sobre a Europa.

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