Quando Otelo Saraiva de Carvalho entrou no posto de comando do MFA, na noite de 24 de Abril de 1974, onde permaneceria, de acordo com o seu relato, até ao final da tarde de dia 26, estaria longe de imaginar que aquele era o momento fundador sobre o qual se construiria a pedra angular do nacionalismo cívico na qual assenta o Portugal contemporâneo. Diferentemente da maioria dos países Europeus, incluindo a nossa vizinha Espanha, Portugal nunca entrou em qualquer conflito armado que tivesse implicações na definição da comunidade imaginada que compõe o país. Obviamente que, antes do 25 de Abril, a ortodoxia do regime impunha a ideia de que os povos colonizados fariam parte da comunidade imaginada. No entanto, como mostram os fluxos migratórios, os Portugueses, na sua maioria, sempre emigraram para países ricos. A comunidade imagina do regime não era a comunidade imaginada do povo. Mais, no momento definidor de 1975, a modernização que o país tinha conhecido desde finais dos anos 50, teve consequências na vitória dos moderados. O país que o dr. Cunhal julgava conhecer, e para o qual tinha preparado com todo o cuidado o Rumo à Vitória em 1964, já não estava apenas dividido entre ricos e pobres. Havia uma classe média emergente que não queria aventuras do estilo Soviético ou Albanês. Queriam a Europa e queriam viver como os Europeus.

Nas últimas décadas, assistimos a uma alteração nas atitudes e percepções dos Portugueses em relação ao 25 de Abril. Há uma diferença geracional fundamental. Os mais velhos, que tiveram o privilégio de viver aqueles dias de euforia e sonho, estão desiludidos. É natural. No 25 de Abril foram criadas expectativas absolutamente irrealistas. Todos os Portugueses, de uma maneira ou de outra, projectaram naquele momento de ruptura todos os seus sonhos para o país. Meio século depois, por contigências várias, incluindo muitos erros da elite reinante e escolhas populares, muitos desses sonhos não se concretizaram. Muito provavelmente nunca se concretizariam. Na verdade, cada vez estou mais convencido que, especialmente nos primeiros trinta anos da democracia, fez-se aquilo que foi possível dadas as contingências estruturais da instrução da população até à inexistência de uma máquina burocrática do Estado. Mais uma vez, enquanto outros países construíram máquinas burocráticas para cobrar impostos ou fazer a guerra, a pré-modernidade de Portugal, que protegeu o povo dos ventos da História da Europa, teve consequências pesadas.

Para as gerações mais novas, o 25 de Abril tornou-se um nacionalismo cívico, uma pertença a um corpo político baseado nos valores da liberdade, da tolerância e do bem-estar colectivo. Ao invés do nacionalismo étnico, em que o corpo político se baseia, fundamentalmente, na pertença via laços de sangue a uma comunidade cultural e linguística, a ideia do 25 de Abril enquanto nacionalismo cívico permitiu criar um sentimento colectivo de pertença baseado em valores progressistas e democráticas.

A importância simbólica que o 25 de Abril ganhou nas novas gerações pode ser ilustrada de duas maneiras. Por um lado, a vontade que todos os partidos políticos, à excepção do Chega, têm de criar uma identificação entre o seu programa e “Abril”. O 25 de Abril, hoje em dia, pode significar a descida dos impostos e o funcionamento do elevador social, tal como a Iniciativa Liberal o vê, por exemplo. Também pode significar o estatismo do PCP na organização da função pública. De resto, não é de estranhar que, na última década, a descida da Avenida da Liberdade tenha agora forte presença de todos os partidos democráticos. Todos os actores políticos estão cientes da necessidade de participarem na comunhão do nacionalismo cívico. Por outro lado, um passeio pela Avenida da Liberdade no 25 de Abril mostra-nos como a fauna que por lá anda mudou de forma radical. Há 20 anos, a descida da Avenida era um espectáculo feito por, e para, a geração que tinha feito o 25 de Abril, coadjuvado por elementos da esquerda. Se não se tivesse sabido reinventar, rapidamente cairia no esquecimento histórico como apenas mais um feriado. No entanto, nos últimos anos, descer a Avenida tornou-se um ritual iniciático e de socialização política, ao qual acodem muitas famílias de classe média, de todos os posicionamentos políticos, levando os seus filhos, muitos deles ainda crianças. O 25 de Abril tornou-se metonímia da condição de ser Português.

Num país com uma história pobre e com pouquíssima participação nos grandes movimentos históricos, artísticos e intelectuais da Europa, o 25 de Abril foi aproveitado como momento fundador da contemporaneidade Portuguesa, reinventando-se como uma espécie de nacionalismo cívico. É dos poucos momentos dos quais os Portugueses podem estar verdadeiramente orgulhosos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Receba um alerta sempre que Jorge Fernandes publique um novo artigo.

QOSHE - O 25 de Abril e o nacionalismo cívico - Jorge Fernandes
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

O 25 de Abril e o nacionalismo cívico

21 2
24.04.2024

Quando Otelo Saraiva de Carvalho entrou no posto de comando do MFA, na noite de 24 de Abril de 1974, onde permaneceria, de acordo com o seu relato, até ao final da tarde de dia 26, estaria longe de imaginar que aquele era o momento fundador sobre o qual se construiria a pedra angular do nacionalismo cívico na qual assenta o Portugal contemporâneo. Diferentemente da maioria dos países Europeus, incluindo a nossa vizinha Espanha, Portugal nunca entrou em qualquer conflito armado que tivesse implicações na definição da comunidade imaginada que compõe o país. Obviamente que, antes do 25 de Abril, a ortodoxia do regime impunha a ideia de que os povos colonizados fariam parte da comunidade imaginada. No entanto, como mostram os fluxos migratórios, os Portugueses, na sua maioria, sempre emigraram para países ricos. A comunidade imagina do regime não era a comunidade imaginada do povo. Mais, no momento definidor de 1975, a modernização que o país tinha conhecido desde finais dos anos 50, teve consequências na vitória dos moderados. O país que o dr. Cunhal julgava conhecer, e para o qual tinha preparado com todo o cuidado o Rumo à Vitória em 1964, já não estava apenas dividido entre ricos e pobres. Havia uma classe média........

© Observador


Get it on Google Play