Tenciono votar no ato eleitoral do próximo dia 4 de outubro, sendo certo no meu espírito que não voltarei a votar em eleições legislativas se a lei eleitoral se mantiver como está.
Eduardo Marçal Grilo, Expresso, 8 de Agosto de 2015

Os chefes dos partidos começam a escolher, perante a passividade geral, os deputados que nós vamos obrigatoriamente eleger em Outubro. Rui Rio já apresentou seis para cabeças-de-lista em Lisboa, Porto, Braga, Aveiro, Leiria e Coimbra. Foi uma surpresa: caras novas, tiradas do anonimato, por critérios que nós nunca saberemos. Só uma coisa está à vista, o feminismo do chefe: quatro mulheres, dois homens. A mim, coube-me uma filha do Pedro e da Helena Roseta, chamada Filipa, sobre qual até hoje não sabia nada, nem sequer que tinha nascido. Estou agora à espera, para comparar, do que vai sair das intrigas do Largo do Rato. Esta extraordinária maneira de nomear os nossos soberanos – representação proporcional, método de Hondt e arbítrio dos chefes – não parece incomodar os portugueses.
Vasco Pulido Valente, Público, 6 de Julho de 2019

Não estava de todo previsto que o presente texto – que corresponde à passagem a escrito do comentário oral que fiz, a convite do Dr. José Ribeiro e Castro, em 28 de Junho de 2019, no Seminário promovido pela SEDES e pela Associação por uma Democracia de Qualidade (APDQ), após a petição n.º 589/XIII/4 apresentada à Assembleia da República[[1]] sobre a mudança do sistema eleitoral – alguma vez viesse a ver a luz do dia.

Todavia, volvidos cinco anos, realizadas duas eleições para a Assembleia da República e dados finalmente a conhecer todos os programas eleitorais dos partidos com representação parlamentar para uma terceira eleição parlamentar, cuja campanha tem hoje o seu início, tornou-se para mim imperioso trazer ao conhecimento dos portugueses esse conjunto de apontamentos e reflexões, depois de ter verificado que os dois maiores partidos omitiram nos seus programas qualquer referência à reforma do sistema eleitoral, quando há 35 anos estiveram de acordo (na revisão constitucional de 1989) na abertura à criação de um círculo nacional (círculo nacional de compensação no qual todavia agora concordam os demais partidos, com a excepção do PCP[[2]]) e quando, há mais de 25 anos, chegaram a acordo (na revisão constitucional de 1997)[[3]] na abertura à introdução dos círculos uninominais, sem prejuízo do respeito pelo princípio a representação proporcional.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

De resto, nesse mesmo ano de 2019, os meus alunos de mestrado em Direito constitucional apresentaram o resultado das suas investigações sobre os principais problemas do sistema político português e do sistema político brasileiro, cujas conclusões tive oportunidade de resumir na Introdução ao livro publicado em 2020 (vol. III dos Estudos Sobre o Constitucionalismo no Mundo de Língua Portuguesa), sendo que, no caso português, esses problemas se prendiam essencialmente com o regime dos partidos políticos, com a cartelização[[4]] do sistema partidário e com os efeitos perversos decorrentes dessa realidade (défice de participação política[[5]], dependência dos partidos relativamente ao Estado[[6]], imobilismo e estagnação do sistema).

Ao meu lado na mesa de debate no ISEG, subordinado ao tema “A degradação do sistema político e a reforma do sistema eleitoral”, encontravam-se então Eduardo Marçal Grilo e Álvaro Beleza – dois apaixonados pela reforma do sistema eleitoral.

Apesar de o Professor Marçal Grilo ter começado por recordar na sua intervenção o artigo de opinião que escrevera em Agosto de 2015 no Expresso sobre a matéria, a verdade é que bastaram 48 horas, após as eleições legislativas realizadas dois meses depois, para que o Partido Socialista declarasse (alegadamente para “não irritar” os partidos à sua esquerda) que abdicaria de avançar no Programa de Governo com a promessa eleitoral (trazida desde inícios dos anos 90 do século passado) de reforma do sistema eleitoral. E assim as coisas se mantiveram até hoje, quanto a esse partido, mas lastimavelmente também quanto ao Partido Social Democrata.

Houve, no entanto, três novidades neste intervalo: a primeira foi a viragem do CDS, em 2021/2022, que passou finalmente a defender a reforma eleitoral e o sistema misto (embora o eleitorado não lhe tenha sido propício); a segunda foi a insistência da Iniciativa Liberal na tecla da reforma eleitoral, pelo menos no que respeita à criação de um círculo nacional de compensação, insistência que conseguiu reunir apoios parlamentares significativos; e a terceira foi, de 2019 em diante, o surgimento e a projecção no sistema político de diversos novos partidos, algo que não estava de modo algum pressuposto nas coordenadas do sistema, e que se apresentou por conseguinte como resposta da realidade contra o status quo.

Saudando os distintos membros da mesa e agradecendo o (insistente) convite que o Dr. José Ribeiro e Castro me dirigiu para aqui estar presente, depois de resumir, logo de início, (1) algumas notas prévias que me parecem úteis e de fazer (2) uma breve referência ao contexto português, pretendo sobretudo (3) arrolar os principais problemas do sistema eleitoral português, para depois (4) identificar como é que a proposta da SEDES/APDQ (de ora em diante, proposta) responde a estes problemas, bem como (5) os efeitos da adopção de uma proposta como essa, para terminar (6) com o registo de algumas reservas, na especialidade.

A primeira das notas prévias que me parece absolutamente necessário fazer é a de que não há sistemas eleitorais perfeitos, nem há sistemas eleitorais melhores do que outros, independentemente do contexto do sistema político em concreto (Sartori). Por outro lado, quem esteja verdadeiramente empenhado numa reforma política deste género deve saber pôr de lado os seus modelos ideais (fazendo uso do pensamento estratégico e visando o resultado principal) – uma lição que nos deixaram os Pais Fundadores da Constituição norte-americana, na Convenção de Filadélfia, que souberam afastar algumas das suas preferências e que, no final, apresentaram o seu trabalho como obra modesta.

A segunda nota prévia é a de que Portugal continua a ser um dos raros países da Europa com listas fechadas e bloqueadas (tanto nas eleições parlamentares como nas eleições regionais, locais e até noutro tipo de designações feitas no âmbito parlamentar).

Todavia – e esta é a terceira nota –, há praticamente quarenta anos que tentamos alterar isso, sem avançar um palmo, naquilo que alguns já chamaram “um cemitério de propostas”; ou seja, depois de dezenas e dezenas de propostas (políticas, legislativas, de revisão constitucional e de outras vindas da Academia e da sociedade), salvo nos Açores, Portugal continua com o sistema eleitoral desenhado em 1975.

Na verdade, como referiu, e bem, o Presidente da República em Setembro de 2018, no nosso sistema político, «não há tema mais estudado do que este». E há mais de 30 anos que está a ser estudado: nas primeiras décadas[[7]] e no final, por um lote de qualificados juristas (António Vitorino, Marcelo Rebelo de Sousa, Vital Moreira, José Ribeiro e Castro, Nuno Garoupa); nas últimas décadas, mais por sociólogos e cientistas políticos (André Freire, Manuel Meirinho, Diogo Moreira, Marina Costa Lobo, José Santana Pereira) e também economistas (caso de Paulo Trigo Pereira). Tal como no seio do PS, entre os juristas (mas não só, se pensarmos em Ana Maria Belchior ou Paulo Trigo Pereira, por exemplo), a preferência tem sido pela adopção do sistema misto alemão; já nos estudos mais recentes de outras especialidades, tem-se apontado no sentido de maior flexibilização de modelos.

A última nota prévia tem a ver com uma constatação: apesar de, neste meio século, muita coisa ter mudado em Portugal e no Mundo, é muito estranho – desde logo na expressão territorial e demográfica do problema – que o sistema eleitoral para a Assembleia da República se mantenha intacto, incluindo no desenho dos círculos eleitorais (que correspondem a circunscrições administrativas na realidade há muito desaparecidas). Mas não é só na demografia e no território: basta pensar na transformação de valores ou das formas de comunicação política[[8]]. E isto sucede quando o sistema político português dispôs – pelo menos, até 10 de Março de 2024 – de condições favoráveis únicas no Mundo: uma unidade nacional incontestável; uma forte auto-confiança como povo; a ausência de conflitos religiosos; a ausência de outras clivagens graves (salvo a que se deixou crescer entre o litoral e o interior); um sistema político que – em regimes democráticos – é “o Paraíso do Poder Executivo”, dispondo de um sistema de governo misto, de base parlamentar (como se tornou ainda mais notório após 2015), e, até ao dia em que escrevo, de um sistema de partidos estruturalmente consolidado (ainda que tenha sofrido uma mutação funcional paradigmática em 2015), não só na medida em que tem resistido a crises, como sempre permitiu aos dois maiores partidos do sistema (alternando no governo como partidos dominantes) alcançar as maiorias necessárias para aprovação de revisões constitucionais (ordinárias e extraordinárias), de leis reforçadas e de estados de excepção constitucional.

Para o que agora importa, o contexto português pode ser resumido em poucas linhas:

Passando então ao arrolamento dos principais problemas existentes no sistema eleitoral português, diria que são os seguintes:

Arrolados os problemas, vejamos, de forma telegráfica, como e até onde a proposta apresentada pela SEDES e a APDQ responde a cada um deles:

A adopção da proposta apresentada, que não requer revisão constitucional prévia, pode surtir uma multiplicidade de efeitos, a começar, no que respeita à dimensão da competição intra-partidária (Shugart), pelo abandono de um sistema eleitoral “extremo” (hoje, totalmente centrado nos partidos). Deixando esse tipo de aspectos de lado, podemos resumir, dizendo que os efeitos podem ser directos, indirectos e profundos.

Entre os efeitos directos, contam-se: a maior personalização do sufrágio, o aumento da qualidade da representação (através da aproximação entre o eleito e o eleitor e através do laço de responsabilização que entre eles passa a existir), bem como o surgimento de uma distinção entre deputados (os que foram eleitos em lista e os que foram eleitos num círculo uninominal).

Por sua vez, entre os efeitos indirectos, contam-se: o “choque exógeno” à abertura e reforma dos partidos, o incentivo à atracção de quadros qualificados, bem como o incremento da participação política (sobretudo no seio dos partidos e no seio nas suas estruturas regionais e locais – actualmente, puras oligarquias).

Por fim, entre os efeitos profundos, arrolaria: o impulso a outras transformações (como a da reforma do Parlamento e a reforma da Constituição), a quebra do habitual imobilismo e a desejadas alterações nos padrões da cultura política prevalecentes.

6 ALGUMAS RESERVAS

Aderindo ao sentido e ao objectivo fundamental de colocar no centro do debate político a reforma do sistema eleitoral, acolhendo os vectores fundamentais da proposta, pois, como se pôde verificar, ela tem a potencialidade de responder aos principais problemas do nosso sistema eleitoral, vindo além disso (desde a proposta de Código Eleitoral de 1987 e passando pela proposta de lei n.º 169/VII, de 1998), na linha que parece ter alcançado maior consenso ao longo destas décadas, não queria terminar este meu comentário sem fazer alguns reparos na especialidade, que são estes:

Lisboa, 25 de Fevereiro de 2024

[[1]] Para acesso ao texto da petição, bem como ao procedimento a que a mesma deu lugar.
[[2]] Em matéria de sistema político, a fórmula do PCP corresponde, no fundo, a uma auto-certificação: “opôr-se aos propósitos de revisão constitucional”, “contestar projectos de revisão das leis eleitorais…” (Programa Eleitoral do PCP – 2024, p. 72).
[[3]] Revisão constitucional essa que foi motivada e que esteve centrada na reforma do sistema político.
[[4]] No cenário actual, apenas o LIVRE ousa referir-se à necessidade de “quebrar a cartelização do sistema” (cfr. Programa do LIVRE – Legislativas 2024, p. 136).
[[5]] Quanto aos dados mais recentes, International IDEA, The Global State of Democracy 2023, p. 136 – assinalando designadamente que, entre 2017 e 2022, o país perdeu 12 pontos nesse indicador; Economist Intelligence Unit, Democracy Index 2023, pp. 9, 36; para uma análise comparada, J. M. L. Viegas/Ana Maria Belchior/F. Seiceira, «Mudanças e continuidades no modelo de participação política em Portugal. Análise comparada europeia», in Perspectivas – Portuguese Journal of Political Science and International Relations 5 (2011), pp. 17-42.
[[6]] Para Vitor Pierantoni, a institucionalização dos partidos em Portugal «foi garantida por um enraizamento dos partidos no Estado» [cfr. «Sistemas de partidos no Brasil e em Portugal», in José Melo Alexandrino (coord.), Estudos sobre o constitucionalismo no mundo de língua portuguesa, vol. III – O sistema político no Brasil e em Portugal, Lisboa, 2020, p. 246].
[[7]] E sem esquecer designadamente os estudos de Francisco Soares e Paulo Pedroso em 1992.
[[8]] A este respeito, veja-se, por exemplo, Retrato Digital de Portugal.
[[9]] Nuno Garoupa vai ainda mais longe: «não há sociedade civil alternativa ao mundo das corporações» (cfr. «Democracia Corporativa», in Público, de 19 de Julho de 2018, p. 43).
[[10]] Já, ao contrário do que muitas vezes se diz, a abstenção é mais um sintoma do que um problema. De resto, como problema, nenhum Governo se quis até agora empenhar a sério no ajustamento dos dados da realidade com os do recenseamento e da abstenção real, como há muito tenho procurado chamar a atenção.
[[11]] Nuno Garoupa chamou a essa “proporcionalidade” «uma enorme piada» (cfr. «A fraude da proporcionalidade eleitoral», in Público, de 30 de Agosto de 2018, p. 38).
[[12]] A partir dos dados recolhidos por António Pedro Teixeira, veja-se a notícia assinada por Maria Lopes, sobre a prática da substituição de deputados, no jornal Público, de 27 de Junho de 2021, pp. 8-9 (também acessível aqui).
[[13]] Lembre-se que o número de deputados já foi reduzido três vezes, na Constituição.

Receba um alerta sempre que José Melo Alexandrino publique um novo artigo.

QOSHE - A reforma inadiável do sistema eleitoral - José Melo Alexandrino
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

A reforma inadiável do sistema eleitoral

40 1
27.02.2024

Tenciono votar no ato eleitoral do próximo dia 4 de outubro, sendo certo no meu espírito que não voltarei a votar em eleições legislativas se a lei eleitoral se mantiver como está.
Eduardo Marçal Grilo, Expresso, 8 de Agosto de 2015

Os chefes dos partidos começam a escolher, perante a passividade geral, os deputados que nós vamos obrigatoriamente eleger em Outubro. Rui Rio já apresentou seis para cabeças-de-lista em Lisboa, Porto, Braga, Aveiro, Leiria e Coimbra. Foi uma surpresa: caras novas, tiradas do anonimato, por critérios que nós nunca saberemos. Só uma coisa está à vista, o feminismo do chefe: quatro mulheres, dois homens. A mim, coube-me uma filha do Pedro e da Helena Roseta, chamada Filipa, sobre qual até hoje não sabia nada, nem sequer que tinha nascido. Estou agora à espera, para comparar, do que vai sair das intrigas do Largo do Rato. Esta extraordinária maneira de nomear os nossos soberanos – representação proporcional, método de Hondt e arbítrio dos chefes – não parece incomodar os portugueses.
Vasco Pulido Valente, Público, 6 de Julho de 2019

Não estava de todo previsto que o presente texto – que corresponde à passagem a escrito do comentário oral que fiz, a convite do Dr. José Ribeiro e Castro, em 28 de Junho de 2019, no Seminário promovido pela SEDES e pela Associação por uma Democracia de Qualidade (APDQ), após a petição n.º 589/XIII/4 apresentada à Assembleia da República[[1]] sobre a mudança do sistema eleitoral – alguma vez viesse a ver a luz do dia.

Todavia, volvidos cinco anos, realizadas duas eleições para a Assembleia da República e dados finalmente a conhecer todos os programas eleitorais dos partidos com representação parlamentar para uma terceira eleição parlamentar, cuja campanha tem hoje o seu início, tornou-se para mim imperioso trazer ao conhecimento dos portugueses esse conjunto de apontamentos e reflexões, depois de ter verificado que os dois maiores partidos omitiram nos seus programas qualquer referência à reforma do sistema eleitoral, quando há 35 anos estiveram de acordo (na revisão constitucional de 1989) na abertura à criação de um círculo nacional (círculo nacional de compensação no qual todavia agora concordam os demais partidos, com a excepção do PCP[[2]]) e quando, há mais de 25 anos, chegaram a acordo (na revisão constitucional de 1997)[[3]] na abertura à introdução dos círculos uninominais, sem prejuízo do respeito pelo princípio a representação proporcional.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

De resto, nesse mesmo ano de 2019, os meus alunos de mestrado em Direito constitucional apresentaram o resultado das suas investigações sobre os principais problemas do sistema político português e do sistema político brasileiro, cujas conclusões tive oportunidade de resumir na Introdução ao livro publicado em 2020 (vol. III dos Estudos Sobre o Constitucionalismo no Mundo de Língua Portuguesa), sendo que, no caso português, esses problemas se prendiam essencialmente com o regime dos partidos políticos, com a cartelização[[4]] do sistema partidário e com os efeitos perversos decorrentes dessa realidade (défice de participação política[[5]], dependência dos partidos relativamente ao Estado[[6]], imobilismo e estagnação do sistema).

Ao meu lado na mesa de debate no ISEG, subordinado ao tema “A degradação do sistema político e a reforma do sistema eleitoral”, encontravam-se então Eduardo Marçal Grilo e Álvaro Beleza – dois apaixonados pela reforma do sistema eleitoral.

Apesar de o Professor Marçal Grilo ter começado por recordar na sua intervenção o artigo de........

© Observador


Get it on Google Play