Acabámos de viver o Tempo das Listas – das listas de deputados. O Tempo das Listas é um Templo, um tempo de separação entre o passado e o futuro. Um templo com duas divindades: o poder e as listas. O poder tem a sua manifestação (cratofania) grandemente de forma unipessoal (o líder), já as listas são uma cratofania coletiva, manifestando-se no conjunto de fregueses de um partido. Neste sentido, o Temp(l)o das Listas evidencia um paradoxo entre um Estado e o interesse público e a forma básica de organização social do mesmo, muito mais característica de uma sociedade tribal e de fórmulas religiosas ancestrais. É nesse paradoxo que encontramos a raiz do que chamo ‘Democracia de Enclave’, que está na base do nosso sistema polític,o mas também das nossas instituições. É, desde logo, este carácter tribal e religioso e a manipulação da ilusão da representação, que afasta muitos da política: é que nem todos são movidos pela sedução do poder e do seu abuso!

Quem está fora deste ‘maesltrom’ nem imagina, mas acredito que seja o tempo em que mais esforço de organização e previsão existe na política portuguesa e também em que mais emoções há: portanto, um momento central da construção do nosso sistema político. De facto, o cidadão comum só pode imaginar os grupos de trabalho fervilhantes numa azáfama de contactos e de elucubrações no sentido de estimarem quantos deputados cada partido pode ter em cada círculo. Também só podemos imaginar as dezenas (talvez centenas) de pessoas ‘em pulgas’ para saber se terão ou não direito a um lugar de deputado e os sonhos que tal situação cria, principalmente em neófitos! O Temp(l)o das Listas é, porventura, o momento mais importante da nossa pobre democracia: e, no entanto, pouca consciência temos disso. Este é o tempo em que uma pequena oligarquia decide em quem os portugueses vão confiar a sua representação nas eleições.

Se fosse uma verdadeira religião, seriam sacerdotes. Como é uma religião laica, são chefes. São eles os organizadores das listas. O grupo dos que decidem mesmo é extremamente restrito. Quantos serão ao certo? No mínimo são 8 (o número de partidos com assento parlamentar), mas dando de barato que pelo menos em alguns casos a decisão final para lugares elegíveis é menos centralizada, podemos conceber uma média de 3 por partido. No máximo devemos ter 230 deputados escolhidos por não mais de 10% dos mesmos: 23! É este grupo de não mais de 23 sacerdotes laicos que decide da constituição da Assembleia da República. Esta democracia de enclave não pode deixar de implicar, assim, um contrato: a representação do povo português é oferecida em troca de lealdade.

Estimados os cenários mais e menos positivos, as ‘linhas de corte’ e os nomes e a sua ordem, ainda que com alguma margem de erro, está tomada a decisão dos 230 deputados, sendo o voto não mais do que uma espécie de plebiscito. A escolha foi feita e os critérios da mesma não passam necessariamente por qualquer legitimação popular. Ela é necessária apenas para confirmar que se acertou (ou não) na escolha: a lógica é a da ‘magia’- só se confirma se resultou a posteriori. A verdade é que é a discricionariedade de um pequeno grupo que decide os deputados a eleger. O Temp(l)o das Listas daria uma boa etnografia da nossa democracia ou um livro de contos! Não sendo uma crónica nenhuma dessas possibilidades, apenas me proponho evidenciar alguns dos enredos que farão parte dessas estórias, utilizando em parte conceitos da Antropologia.

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O Temp(l)o das Listas faz lembrar, desde logo, o mito do eterno retorno. Acabou um tempo que se esgotou de cansaço e recomeça outro, como se fosse do zero, para o mal e para o bem. O ciclo é do poder ao impoder. As Listas são a separação (o tempus) e o reavivar do poder. É para todos um tempo novo! O Tempo das Listas é, assim, um tempo cíclico, uma espécie de carrocel (mais uma corrida, mais uma viagem!) de uma religião em torno do poder. Os partidos existem para o grande momento que é a cratofania do Tempo das Listas. Cada um procura confirmar perante si próprio e os outros que é de um tempo novo. Qualquer que seja o tempo velho de que venha! Cruzam-se, assim, enredos de emoção e drama com reconfiguração, plástica e máscara.

O Tempo das Listas é, assim, também um tempo de rituais. Rituais de passagem, pessoais e coletivos. E também rituais de instituição. É um tempo de convocação geral da tribo em torno da fogueira do poder: os chamados congressos. O Congresso é o lugar onde se renova o tempo: o templo propriamente dito. É nestes congressos que se reconta (melhor ou pior) o mito fundador da tribo e os seus heróis ou patriarcas (quase nunca matriarcas!). É o tempo de aproximação de todos com os ‘que podem falar’: os chefes das linhagens e, mesmo, o chefe do clã. É mesmo o tempo excepcional de militantes poderem falar. Mas, para além da reunião geral, o tempo é de encontros e de reencontros vários em que se evocam velhas estórias para consolidar solidariedades presentes. O Temp(l)o das Listas é um tempo acelerado, em que o poder se ‘cheira’ de tão perto, um tempo forte e em que tudo pode fazer sentido: um gesto, um telefonema, um abraço…quem sabe! E é também um tempo de confissões, de juras, de barganhas e promessas…e de secretismos: “para já fica tudo entre nós!”

É no Temp(l)o das Listas que, de facto (ainda que não de direito), se dá o ritual de instituição do deputado. A forma como tal ritual se dá define a própria instituição e, portanto, a substância do cargo. Precisávamos aqui claro de mais informação: o que os antropólogos chamam etnografia com descrição densa. Não a tendo, podemos apenas imaginar e colocar hipóteses. Pode ser um convite personalizado, até presencial, para instituir a relação de confiança (esperada) ou mais ligeiro quando tal relação já está clara. De qualquer forma há um ritual em que o futuro deputado é convidado por alguém hierarquicamente superior a ter a possibilidade de vir a ser representante…do povo português. É aqui que se estabelece um duplo vínculo de representação: ascendente ao líder e descende ao povo. De facto, cria-se uma relação entre lealdade e identidade: a identidade de deputado é função de uma lealdade. É essa a manipulação da ilusão da representação.

O Temp(l)o da Listas é, assim, um tempo de tribos em que o efeito-aldeia se faz sentir. É um tempo dominado pelas oralidades, pela co-presença, pela dramatização gestual! É um tempo fora do tempo, um tempo a-histórico para preparar a nova história. E um tempo de tribos é um tempo de ‘chefes’: dos velhos e dos novos; de linhagens e de clãs. Mais importante do que “o que faz(es)?” é “a quem pertences?”. Há velhos e novos ‘patriarcas’ e cada um deles quando chega a patriarca representa e fala por uma linhagem: os ‘socratistas’, ‘costistas’, ‘nunopedristas’, ‘cavaquistas’, ‘passistas’, ‘rioristas’… É interessante o tempo em que o nome da linhagem surge: umas vezes para instituir e dar força ao líder, outras só quando o líder já se instituiu ou é mesmo passado. O ‘chefe’ fala por uma linhagem mas, ao mesmo tempo, quer ser chefe de todo o clã e mesmo de toda a aldeia que o país é.

O Temp(l)o das Listas revela um Portugal de aldeias: as tribos das concelhias, das distritais e de Lisboa. Esse Portugal de aldeias é toda uma filosofia dos círculos eleitorais em que alguns podem ser de Aveiro porque gostam de ovos moles ou de Vila Real porque gostam de covilhetes, de Braga porque apreciam pudim abade de Priscos…ou, simplesmente, porque ao se chegar ao poder em Lisboa já se pode representar qualquer círculo do país! Ou não fosse o país Lisboa! Há-de haver lugar sempre para os de ‘direito adquirido’, os de ‘confiança pessoal’ e alguns ‘históricos’! E, em alguns círculos mais específicos, talvez pela competição, até haverá alguns lugares para quem teve apoio popular autárquico expressivo…

Assim, o Temp(l)o do Poder e das Listas é claramente um tempo épico: o tempo dos heróis. Os heróis renovadores e ‘prometaicos’ são aqueles que incorporam melhor a divindade do Poder e heróis dialogantes e ‘hemenêuticos’ parecem-nos sempre mais ‘frouxos’. E, assim se vai reproduzindo a democracia de enclave! De qualquer forma, é o tempo da oportunidade de ser herói ou parte da história de um herói: é o tempo de fazer parte de um enredo, de uma história que mais tarde se vai contar. Talvez no próximo congresso! O Temp(l)o das Listas é o tempo do ‘chegar-se à frente’ e ‘mostrar o que vale’, o tempo de ‘apostar no cavalo certo’, por vezes mesmo o do ‘é agora ou nunca’! E, por isso, é também o tempo ‘do coração ao pé da boca’! É o tempo do português no seu labirinto. No final querem todos o mesmo: uns um ‘Portugal Inteiro’ e outros ‘Unir Portugal’. Realmente o que fazer senão isso de um país em cacos!

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O Temp(l)o das Listas 

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30.01.2024

Acabámos de viver o Tempo das Listas – das listas de deputados. O Tempo das Listas é um Templo, um tempo de separação entre o passado e o futuro. Um templo com duas divindades: o poder e as listas. O poder tem a sua manifestação (cratofania) grandemente de forma unipessoal (o líder), já as listas são uma cratofania coletiva, manifestando-se no conjunto de fregueses de um partido. Neste sentido, o Temp(l)o das Listas evidencia um paradoxo entre um Estado e o interesse público e a forma básica de organização social do mesmo, muito mais característica de uma sociedade tribal e de fórmulas religiosas ancestrais. É nesse paradoxo que encontramos a raiz do que chamo ‘Democracia de Enclave’, que está na base do nosso sistema polític,o mas também das nossas instituições. É, desde logo, este carácter tribal e religioso e a manipulação da ilusão da representação, que afasta muitos da política: é que nem todos são movidos pela sedução do poder e do seu abuso!

Quem está fora deste ‘maesltrom’ nem imagina, mas acredito que seja o tempo em que mais esforço de organização e previsão existe na política portuguesa e também em que mais emoções há: portanto, um momento central da construção do nosso sistema político. De facto, o cidadão comum só pode imaginar os grupos de trabalho fervilhantes numa azáfama de contactos e de elucubrações no sentido de estimarem quantos deputados cada partido pode ter em cada círculo. Também só podemos imaginar as dezenas (talvez centenas) de pessoas ‘em pulgas’ para saber se terão ou não direito a um lugar de deputado e os sonhos que tal situação cria, principalmente em neófitos! O Temp(l)o das Listas é, porventura, o momento mais importante da nossa pobre democracia: e, no entanto, pouca consciência temos disso. Este é o tempo em que uma pequena oligarquia decide em quem os portugueses vão confiar a sua representação nas eleições.

Se fosse uma verdadeira religião, seriam sacerdotes. Como é uma religião laica, são chefes. São eles os organizadores das listas. O grupo dos que decidem mesmo é extremamente restrito. Quantos serão ao certo? No mínimo são 8 (o número de partidos com assento parlamentar), mas dando de barato que pelo menos em alguns casos a decisão final........

© Observador


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