Nem todos gostamos de futebol ou de desporto. Eu sou daqueles, porém, que não concebe uma vida que mereça ser vivida sem futebol. E, nesse plano, ser portista define-me, faz parte da minha personalidade. É algo que não se explica ou racionaliza, vive-se em estado puro no domínio da paixão. No meu caso, ser portista confunde-se com o ser portuense, e essa dualidade explica, ainda hoje, muito daquilo que sou.

O meu interesse pelo futebol nasceu antes de eu ter memórias, pelo que desde que me recordo que sou portista e adoro a adrenalina de chutar uma bola. Por influência – e paciência – de um tio (obviamente, o preferido), que desde muito novo substituiu o papel de um pai benfiquista e para quem a bola sempre foi quadrada, comecei a frequentar o estádio das Antas e a viver a emoção dos jogos – e das entradas à penetra, entre multidões, pernas e torniquetes que aprendi a tornear. O futebol que me foi oferecido pelo meu Tio Pedro nos anos 80 era agreste, sem comodidade, mas feito de emoção. De vitórias e derrotas vividas no limite, em estádios muitas vezes de terra batida, ou de jogos fora, ouvidos na telefonia, sem imagem, mas onde o relato era de tal forma intenso que conseguíamos imaginar cada detalhe do que se passava, dentro e fora do campo.

As memórias desse tempo, essas, permanecem, umas claras, outras difusas. Lembro-me bem das visitas ao salgueiral, em Paranhos, ao estádio do Mar, com arremesso de calhaus, das invasões de campo na conquista de vários campeonatos, e de um mítico jogo para a Taça das Taças, o Porto-Wrexham, onde a marcha do resultado foi sendo condicionada pela ação de um dilúvio e a inação de um guarda-redes – Peter Borota – cujas artes de aviário se tornaram inesquecíveis. Aliás, nesse jogo percebi que na minha cidade, os “v’s” se pronunciam “b’s”: é que um senhor que ao meu lado assistia ao jogo, sempre que o azarado Borota se baralhava com a bola, no meio do temporal, ida dizendo, “o bento acabou de marcar um golo; o bento marcou mais um; hoje o bento marcou três golos”. Só horas mais tarde percebi, quando cheguei a casa que, afinal, o culpado do fracasso portista tinha sido o “vento”, e não o guarda-redes do Benfica, Bento de seu nome, que eu assumi, na minha tenra idade, ser o responsável pelo fracasso portista. O futebol nesse tempo foi também um momento onde o meu léxico ficou enriquecido, com calões e metáforas que, por pudor e respeito ao Observador, me abstenho de aqui verbalizar.

Em 1986, porém, ocorreu magia. Numa televisão cheia de caprichos, a partir de Viena, Futre, Madjer e Juary conseguiram o que nunca ninguém achava possível, conquistar uma taça dos campeões e levar o meu clube do coração ao trono maior do futebol europeu. Recordo-me de correr da cave ao 1.º andar de casa dos meus pais, depois do primeiro golo e, regressado à cave, assistir de imediato ao segundo que me levou de novo a uma corrida que, hoje, seria impossível, por fala de pernas e pulmão. A alegria transbordante que senti nesse dia, e as vitórias do Porto, daí em diante, fizeram mais pela minha auto-estima e confiança que qualquer curso pós-moderno de auto-ajuda, e o futebol na adolescência, comigo já emancipado, e vivido com os amigos, faz parte dos momentos mais felizes da minha vida, algo que recordo com saudade. Tenho no palmarés várias vitórias ao vivo na Luz, em Alvalade, em Manchester, Lyon, Corunha e Gelsenkirchen. E na memória jogos grandes, como uma vitória maravilhosa em Sevilha, que assisti em fuso estranho a partir da Nova Zelância, num pub onde poucos compreendiam a minha alegria, ou de Rhode Island, quando Yuran e Kulkov faziam estragos (no campo, não na famosa noite portuense).

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Todas as alegrias desportivas que vivi foram-me oferecidas por grandes homens do desporto, jogadores fantásticos e treinadores brilhantes. São tantos que não há texto que aguente a sua indicação. Mas há que dizê-lo: em todas elas, em todas as vitórias, derrotas, uma pessoa esteve sempre presente, a segurar o leme: o grande timoneiro foi, não tenhamos dúvidas, Jorge Nuno Pinto da Costa.

Há vários anos que, com tristeza, fui assistindo à degradação moral do clube do meu coração. Há vários anos que alimento a esperança de uma mudança, sempre receando que a transição fosse dolorosa e indigna.

No domingo, porém, voltou a ocorrer magia. Toda a nação portista deu nos últimos meses um exemplo maior ao país, unindo-se de forma serena e civilizada para patrocinar uma mudança feita em liberdade, na máxima legalidade, e num respeito profundo pela história do clube. Onde muitos desejavam violência e divisão, emergiu união, alegria, futuro. Se a cidade é invicta, o seu clube também o soube ser.

Aquilo que sinto hoje é, seguramente, partilhado pela maioria dos portistas. Gratidão e Esperança. Gratidão a Pinto da Costa por todo o seu legado. Gratidão a André Villas Boas pela coragem, firmeza, serenidade e elevação que permitiram desmantelar uma transição que a tantos nos parecia quase impossível. E Esperança. Pois um clube que exibe, no seu povo e massa associativa, semelhante carácter, está destinado a prosseguir virtuoso e vitorioso. O futuro é exigente, mas também por isso, vale a pena continuar a sonhar com as vitórias que estão para vir.

Obrigado, Porto, por me fazeres portista.

Receba um alerta sempre que Rodrigo Adão da Fonseca publique um novo artigo.

QOSHE - Porto no coração - Rodrigo Adão Da Fonseca
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Porto no coração

22 7
30.04.2024

Nem todos gostamos de futebol ou de desporto. Eu sou daqueles, porém, que não concebe uma vida que mereça ser vivida sem futebol. E, nesse plano, ser portista define-me, faz parte da minha personalidade. É algo que não se explica ou racionaliza, vive-se em estado puro no domínio da paixão. No meu caso, ser portista confunde-se com o ser portuense, e essa dualidade explica, ainda hoje, muito daquilo que sou.

O meu interesse pelo futebol nasceu antes de eu ter memórias, pelo que desde que me recordo que sou portista e adoro a adrenalina de chutar uma bola. Por influência – e paciência – de um tio (obviamente, o preferido), que desde muito novo substituiu o papel de um pai benfiquista e para quem a bola sempre foi quadrada, comecei a frequentar o estádio das Antas e a viver a emoção dos jogos – e das entradas à penetra, entre multidões, pernas e torniquetes que aprendi a tornear. O futebol que me foi oferecido pelo meu Tio Pedro nos anos 80 era agreste, sem comodidade, mas feito de emoção. De vitórias e derrotas vividas no limite, em estádios muitas vezes de terra batida, ou de jogos fora, ouvidos na telefonia, sem imagem, mas onde o relato era de tal forma intenso que conseguíamos imaginar cada detalhe do que se passava, dentro e fora do campo.

As memórias desse tempo, essas, permanecem, umas claras, outras difusas. Lembro-me bem das........

© Observador


Get it on Google Play