Quando a Sara Tavares cantou e venceu o Chuva de Estrelas e o Festival da Canção, todas as miúdas negras da periferia de Lisboa e desse Portugal fora ganharam com ela. Corriam os anos de 1993 e 1994, fazíamos parte da primeira geração negra do pós-25 de Abril. Isso significava, ao mesmo tempo, uma pesadíssima herança colonial e uma pequena fissura por onde alguma mudança poderia entrar. Então, naquelas noites em que a Sara invadiu a partir da TV as salas de jantar, cafés e restaurantes deste país; naqueles momentos em que a voz cristalina de um ser genial chamado Sara “abafou” todo e qualquer adversário; então, naqueles breves minutos, deixámos de ser mandadas para a “nossa terra”, porque subitamente éramos daqui; deixámos de ser as “pretas da Guiné que lavavam a cara com chulé”, as “barrote queimado”, as “macacas” que cheiravam a “catinga”. Nunca saberemos o número de meninas negras que imitavam a Whitney Houston na cozinha, no quarto e sentadas nos muros da sua rua perante uma audiência imaginada e que, com a vitória da Sara, viram o horizonte ficar mais largo. Ninguém registou que as vitórias musicais retumbantes da Sara eram também vitórias no reconhecimento da nossa humanidade. Naquelas noites, o velho Portugal tinha-se vergado e rendido, mesmo que por poucos minutos.

QOSHE - Obrigada, Sara, por tanta coisa bonita - Cristina Roldão
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Obrigada, Sara, por tanta coisa bonita

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20.11.2023

Quando a Sara Tavares cantou e venceu o Chuva de Estrelas e o Festival da Canção, todas as miúdas negras da periferia de Lisboa e desse Portugal fora ganharam com ela. Corriam os anos de 1993 e 1994, fazíamos parte da primeira geração negra do pós-25 de Abril. Isso significava, ao mesmo tempo, uma pesadíssima........

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